As desventuras de um tutor de bairro, em Cascais

Aceitei de braços abertos o convite que me foi endereçado, em 2009, para ser tutor do bairro onde resido, a Pampilheira, pela empresa municipal Cascais Ambiente. Não esperava, todavia, que a minha missão viesse a ter tantos episódios mui interessantes de contar.

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O Bairro da Pampilheira

O núcleo inicial do bairro chama-se ainda hoje (mas só os mais antigos é que sabem) Barraca de Pau, porque a essa barraca se dirigiam os moradores dos lugares circunvizinhos quer para beberem um copo, buscar mercancia na taberna, na mercearia e na padaria ou, simplesmente, para conviver. A comunidade aí formada era constituída não apenas por saloios de raiz (poucos) mas sobretudo por gente dos Algarves e do Alentejo, que viera para o trabalho nas pedreiras ou nas quintas de pendor agrícola existentes.

Nasceu o Bairro da Felicidade, cujo nome lembrava a mãe do Manuel Martins (o «Manel da Barraca»), falecido não há muito. O prédio era, e é, grande e mantém dependências agrícolas com alfaias, que, um dia, importará recuperar, entre as quais, uma das carroças dos anos 50.

Sempre foi esse o meu ambiente desde pequeno e, por isso, ser tutor desse bairro era uma honra.

Acontece, porém, que o bairro está na saída e entrada poente de Cascais e há, naturalmente, questões de trânsito – ou, como hoje se diz, de Mobilidade Urbana – que importa encarar com olhos de ver. Também para isso estão os moradores, mais do que os técnicos camarários, mormente os que se habituaram a estar nos gabinetes.

Confesso, por tal motivo, manter um relacionamento difícil com a Divisão de Trânsito e Mobilidade da Câmara de Cascais. Não tive estudos nesse âmbito e rejo-me pelo que julgo ser o senso comum.

  1. O lugar para o frigorífico

O primeiro embate – digamos assim – de que nunca mais me esqueci e já ocorreu há largos anos, aconteceu quando tive o privilégio de ser recebido pelo respectivo Chefe, que, por sinal, fora meu aluno nos Salesianos do Estoril. Ia contar-lhe o caso da Rua da Bela Vista, em Cascais, aonde então eu ia frequentemente e tinha dificuldade em arranjar lugar para estacionar e dei conta de que um vizinho morava num prédio com garagem e pintara no chão, a traços amarelos, um espaço teoricamente reservado para duas viaturas (ele só tinha uma). Aliás, na sequência, um outro morador, funcionário municipal e meu amigo de infância (andámos na escola juntos), lograra que, no prédio a seguir, onde morava, fossem colocados pilaretes, a fim de também aí se não estacionar. Achei que devia reclamar dos traços amarelos.

– Professor – retorquiu-me o Chefe – quando compra um frigorífico tem de saber previamente onde é que o vai colocar.

– Tens razão – concordei de pronto.

E vim-me embora.

Os traços amarelos continuam lá e o senhor já morreu.

  1. Placa à direita?

Da outra vez, o senhor vereador, perante a minha insistência, teve a gentileza de me vir buscar com o Chefe da Divisão, para eu lhe explicar onde é que me parecia dever pôr-se uma placa a identificar o Bairro da Pampilheira na Avenida Eng.º Adelino da Costa. Mostrei. Retorquiu o Chefe:

– Mas se puser a placa aqui, do lado direito de quem vai para norte, como é que se sabe que o bairro é também do lado esquerdo?

Pedi então ao Senhor Vereador que o motorista nos levasse até à rotunda que nós chamamos «de Birre». Fizemos inversão de  marcha, parámos e mostrei a placa que, do lado direito, diz CASCAIS.

– Cascais é daqui prá frente, tanto do lado direito como do esquerdo, não lhe parece?

E assim a ­– repetidamente solicitada – placa PAMPILHEIRA ainda não foi colocada na avenida. Meti ao barulho o presidente Judas, o presidente Capucho, o presidente da Junta… Nada! Placa não há!

  1. Pró hospital é por aqui? Quando se sobe pela 3ª circular, pode haver alguma dúvida, à entrada para a A5 se, para ir para o hospital, se segue pela autoestrada ou não. Sugeri que se pusesse aí placa a indicar a direcção correcta. Não fui atendido, por se ter considerado desnecessário.

É o que eu digo: não tenho estudos!

  1. E o Cobre é prá frente!

Ao sair da autoestrada para Cascais, há, antes dessa «rotunda de Birre», uma placa que indica a direcção COBRE em frente. Para o Cobre, no entanto, ou se entra logo ali, na rotunda, à esquerda, ou não há mais placa nenhuma a indicar quando é que pode voltar-se para o Cobre. Não consegui ainda explicar (que raio de professor me saíste, ó Zé!) e uma das respostas que já recebi, por mais do que uma vez (porque eu sou do género ‘água mole em pedra dura…’), sempre nos mesmos termos, foi:

«Na sequência de informação prestada pela Divisão de Trânsito e Mobilidade, após deslocação de técnico ao local,  verificou-se que a indicação de Cobre no painel direcional está correta. Indica uma das possibilidades de entrar na localidade do Cobre pela via distribuidora, a Av. Eng.º Adelino Amaro Costa, pelo que a mesma  não será alterada» (Refª E-DCID/2019/23023, email de 27/04/2020 16:15 h.).

Tenho esperança que, qualquer dia, um Senhor Presidente venha ver e tenha força para mudar a posição do nome (é só isso que basta fazer!!!).  

  1. Os mais difíceis 90 graus!

Consegui, com o incondicional apoio dos serviços camarários e o empenho pessoal do vereador Frederico Nunes, que, na empena altamente degradada dum edifício central do bairro, o pintor de renome internacional Rocket01 (o  nome artístico do inglês  Chris Butcher) pintasse o mural que faz as delícias dos residentes e dos muitos passantes. Sucede, todavia, que é negro o fundo escolhido pelo artista e, por tal motivo, o recanto formado no entroncamento das ruas Eça de Queiroz e Diogo do Couto se tornou mais sombrio à noite. Acresce que por aí – através de passagem deveras angusta – se vai aceder ao agora agradável recanto ajardinado que dá para a Rua Fernão Lopes.

Pareceu-me – cá está o estuporado senso comum! – que seria fácil resolver essa obscuridade: bastava pedir à E-Redes que rodasse 90 graus a posição do candeeiro! Isso propus aos serviços camarários:

«Ocorrência nº: 2912838

Categoria: Ocorrências » Iluminação Pública » Avaria

Descrição: Tendo em conta a concretização do mural na empena do prédio de esquina entre as ruas Diogo do Couto e Eça de Queiroz, no Bairro da Pampilheira, solicito os bons ofícios dos respectivos serviços camarários para se solicitar à EDP a alteração de orientação do candeeiro de iluminação pública do poste que fica mesmo defronte do mural.

Trata-se de uma zona não muito iluminada e a orientação do candeeiro no sentido da Diogo do Couto (em vez de estar para a Eça de Queiroz) não só evitaria esse espaço de penumbra mas, sobretudo, acabaria por iluminar o painel agora concluído, o qual, mantendo-se a orientação em que o cadeeiro ora está, permanece na sombra, o que é acentuado pelo facto de ser negro o fundo do mural».

Asneira! Porque é que eu havia de falar do mural?

Por isso, cá veio a resposta (email de 24 de setembro de 2021 09:30 h, Ocorrência nº [#2912838]):

«No seguimento do seu contacto, que agradecemos, cumpre-nos informar que, de acordo com a Divisão de Obras de Vias e Infraestruturas, a luminária que se encontra orientada para a rua Eça de Queiroz não pode ser deslocada para a rua em questão».

Perdão, desta vez não foi a Divisão de Trânsito, tenho o azar de encontrar várias pela frente!

Retorqui (email desse mesmo dia às 10.39 h):

«Claro, para um leigo, mudar a posição de um candeeiro de uma para outra face do poste não se afigura tarefa complexa para a EDP; razões técnicas haverá, que muito me agradaria me fossem comunicadas».

Não tive, na altura, resposta às razões técnicas, mas vim a tê-las mais tarde (email de 16/11/21 12:20  h):

«No seguimento do seu contacto, que agradecemos, e após nova consulta ao departamento responsável, cumpre-nos informar que a função da iluminaria [sic] é iluminar a via pública, pelo que não se nos afigura correta [sic] alterar a posição da mesma a função da iluminação pública é iluminar a via pública e não as empenas ou fachadas dos edifícios».

Entretanto, o meu email de Setembro voltou a aparecer nos serviços, certamente por outra via; foi-lhe, pois, dada outra referência (E-DCID/2021/20900) e acabei por receber (email de 21/02/2022 11:21 h. – Ocorrência nº IOL-2912838) o seguinte:

«No seguimento do seu contacto, que agradecemos, cumpre-nos informar que de acordo com a Divisão de Obras de Vias e Infraestruturas, mantemos a informação prestada. A função da IP é iluminar a via pública e não as empenas ou fachadas dos edifícios».

Rendi-me. Da E-Redes, do Porto, disseram-me que nada podiam fazer, sem mandado expresso da Câmara. Perdi também esta batalha. Se Deus me der vida e saúde, não me apetece, todavia, perder a guerra, mesmo que o Senhor Presidente – que também foi meu aluno – não possa intervir. Sei que os chefes não duram sempre e, se Deus quiser, a gente ainda vai estar por cá mais uns tempinhos. Eu ou outro tutor! Oxalá!

1 COMENTÁRIO

  1. Acabei a leitura deste elucidativo texto muito bem disposta e iluminada de ideias.
    I – Não me apeteceria ser tutora de bairro, apesar de haver tanto a denunciar também por aqui e de pouca gente se oferecer para essa espinhosa missão.
    II- Que difícil (e às vezes hilariante) se torna a comunicação entre pessoas que falam a mesma língua. Cheguei à conclusão de que talvez não falem… Já sabemos que o poder causa algumas transformações no ser humano (e até corrompe, dizem…). É bom possível que altere o modo de descodificar as palavras…
    III. A esperança é a última a morrer. Todas estas peripécias de um Prof. universitário que aceita com o maior empenhamento cívico a tutoria do seu bairro, fizeram-me lembrar o percurso acidentado de certa senhora idosa, até à paz definitiva.
    Num ajuntamento de barrulhentos que se digladiavam sem concordância em matéria alguma, primava pela serenidade impondo o seu ponto de vista. Quando alguém de fora lhe perguntava porque nunca se alterava, se não tinha inimigos, respondia: “morreram todos, agora estou muito bem…Já passei a idade de me combaterem”.
    Isto a propósito da paciência do autor desta bela exposição para esperar tempos melhores.
    Um abraço.

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