Perguntava eu, outro dia, aos leitores de Cascais se saberiam donde vinha a palavra Crismina. A questão fora-me posta por uma colega e eu não soube responder. Sempre ouvi falar de -Crimina. Sei de cor, desde puto, o que está na tabuleta: «CRISMINA / EM REGIME FLORESTAL / DECRETO DE 20-6-1906 / É PROIBIDO CAÇAR». Nunca me perguntei, porém, o que é que o nome queria dizer; ou melhor, por que razão haveriam dado esse nome àquela extensão de terra, fundamentalmente dunar, que separava a Marinha da orla do Guincho. Marinha compreende-se: é o que está perto do mar. Agora, Crismina!…
Encontrei – e houve quem também tivesse encontrado e mo comunicou – um suposto masculino, «crismino», indicado como termo tipicamente algarvio (eu nunca o ouvi, confesso!), para qualificar uma «espécie de pêssego suculento e grande». E há igualmente quem se chame Crismino.
Portanto, por agora, de Crismina nada se sabe. A curiosidade radica no facto de termos clara a ideia de que a atribuição de um topónimo – topónimo é o nome de um lugar, palavra composta de dois vocábulos gregos: τόπος («tópos»), que significa ‘lugar’, e όνομα («ónoma»), que significa ‘nome’ – está intimamente ligada a uma história. Nisso, os Árabes foram mestres: sítio era arenoso? Chame-se-lhe Areia ou Areal; avia por ali muitas videiras? Então, é Alvide!…
Vêm estas considerações gerais porque pode perguntar-se a razão por que se deu a um bairro a noroeste da vila de Cascais o nome de Rosário. ¿E terá rosário a conotação religiosa, aquela oração de três terços, sendo cada terço uma série de dez ave-marias com um padre-nosso e um glória de permeio, mais três ave-marias e a salve-rainha no fim? ¿Ou será, antes, simbolicamente, uma sequência, por exemplo, de colinas ou de serros, de que pudéssemos dizer assim «é como um rosário, uns atrás dos outros»?
Não parece lógica esta última hipótese, por se tratar de zona relativamente plana, onde o pinheiro era a árvore dominante. O certo é que foi esse o nome que a Câmara lhe deu, quando, em meados do século XX, a pacata vila cascalense deu em se expandir. Sabemos que todas as suas ruas têm nomes de navegadores, o que parece uma contradição, pois o Bairro Navegador fica para as bandas das Fontainhas e a Igreja dos Navegantes em pleno centro histórico da vila. Assim se pensou, assim se fez, mais para dar uniformidade às designações, numa altura em que havia Comissão Municipal de Toponímia, que decidiu dar nomes de flores aos arruamentos de Birre, de escritores aos do Bairro da Pampilheira, de santos aos da Areia… Hoje, nesse aspecto, a desordem é total e chega a haver duas ruas Eça de Queiroz na freguesia de Cascais, paredes-meias, até, em Murches, com uma terceira, já na freguesia de Alcabideche…
Vamos, então, à história que subjaz à atribuição do nome de Rosário a esse bairro a noroeste da vila. É que houve por ali uma igrejinha em honra de Nossa Senhora do Rosário. De acordo com o que se conhece dos limites da cerca do Convento de Nossa Senhora da Piedade (actual Centro Cultural de Cascais), teria sido edificada mais ou menos onde hoje existe a Rotunda Comendador Joaquim Baraona, ou seja, à saída das ‘terras’ da vila para a estrada que leva ao Guincho.
Não se sabe quando foi demolida. Pedro Borges Barruncho, que escreveu em 1873, dela diz apenas: «Existem as ruínas. Foi cemitério dos coléricos em 1833 e era nesta ermida que antigamente os escravos existentes em Cascais tinham licença de seus senhores para fazerem uma festa anual» (História da Villa e Concelho de Cascais, 1873, p. 48). Por essa altura, ainda o topónimo se mantinha, como pode ver-se na figura que se apresenta, retirada do livro de Ferreira de Andrade, Cascais Vila da Corte, desenhada nos anos 40 do século XIX.
Começámos pelo fim. Importa ir ao princípio, porque temos história para contar. E, claro, recorremos ao relato do Prior de Cascais, de 1758, que, nisto de histórias prodigiosas jamais deixou os seus créditos por mãos alheias!… Uma história muito parecida com a lenda que está na origem da ereção, em Roma, da igreja de Nossa Senhora das Neves (hoje, Basílica de S. Maria Maior), ao tempo do Papa Libério (352–366). Reza assim a de Cascais.
Andava Luís de Barros à pesca com seu barquito nesses cascalenses mares quando a ele se chegaram os piratas mouros. Ficaram-lhe com o barco e a ele levaram-no cativo. Comprou-o um homem, que deu em o espancar todos os dias à paulada, como se de um animal se tratasse.
Não sabendo que fazer à vida nem como sair desta aflição, recorreu Luís de Barros a Nossa Senhora: se o livrasse de tais tormentos e «o trouxesse livre à sua terra», ali Lhe ergueria capela da invocação de Nossa Senhora do Rosário.
Por feliz coincidência, sua mulher, Margarida Lopes, fizera em Cascais promessa igual, pois de todo desconhecia sequer o que acontecera ao marido e por ele muito ansiava.
E o certo é que, tendo-se deitado, numa noite, «cativo carregado de cadeias e pancada», Luís de Barros acordou de manhã «em terra de Cristãos, em Castela, sem saber o como nem quem ali o trouxera». De pronto, assim «tão milagrosamente livre», tratou de empreender viagem para Cascais e, ao encontrar a mulher, dela soube que, «no mesmo dia e na mesma hora», sem saberem nada um do outro, também ela fizera o mesmo voto.
Encetaram, pois, as diligências para dar cumprimento ao prometido, diligências que incluíam necessariamente a autorização papal, que lhes viria a ser concedida pelo Papa Pio IV, que exerceu o seu pontificado de 1559 a 1565. A questão estava agora em saber onde se deveria erguer o templo. Daí que a intervenção de Nossa Senhora não se tivesse feito esperar: em sonhos, disse a Margarida Lopes «que era vontade Sua que a capela se fizesse no caminho que vai para a Guia, onde, no dia seguinte, achasse neve em uma cova». Fenómeno extraordinário, sem dúvida, porque não só não era tempo de nevões como, até pela proximidade do mar, nevar já nesses tempos era mui raro em Cascais.
Encontrado facilmente o sítio com a neve, depressa meteram mãos à obra.
O prior Marçal da Silveira ainda viu o templo. «Não tinha mais âmbito que o que tem hoje», escreveu: a capela-mor junto a uma casinha a servir de sacristia, «tudo em telha vã e muito pobre». Tal não impedia, porém, que tudo fosse tratado «mui asseadamente» e tivesse ermitães, apresentados pelos priores da freguesia da Nossa Senhora da Assunção.
Tendo falecido sem descendência, Luís de Barros e Margarida Lopes legaram os seus bens aos responsáveis pelo templo. É que, entretanto, aí pelo ano de 1645, por iniciativa das Beatas da Ordem Terceira de S. Francisco – ligadas à congregação dos Franciscanos Recoletos do Convento de S. António de Xabregas –foi erigido junto à igreja um recolhimento e as ditas Beatas acabaram por transformar a ermida em igreja, edificando mesmo um coro. Chegou a ter irmandade própria, que, «com magnificência e gasto», anualmente festejava Nossa Senhora, havendo procissão e outras cerimónias religiosas no primeiro domingo de cada mês.
No templo foram sepultados os seus fundadores. O Padre Marçal da Silveira, servindo-se do «Livro 4º dos óbitos da freguesia que começa em 1650, folhas 143, 173 e 174», identifica outras pessoas que ali mereceram repousar. E acrescenta que o terramoto tudo arruinou; contudo, procedeu-se depois dele à reedificação, «mas mais pequena e sem coro».
Falou-se do cemitério dos coléricos. Portugal e a Europa sofreram, no século XIX, três vagas de uma grande epidemia conhecida pelo nome de ‘cólera morbus’ (morbus é palavra latina que significa ‘doença’). A mortandade foi tão grande que se tornou necessário improvisar cemitérios, normalmente em locais afastados do centro das localidades. Assim aconteceu em Cascais, por ocasião da 1ª vaga, em 1833, e também, por exemplo, no ano de 1855, em S. Brás de Alportel, onde se encontraram, além das ossadas, lápides com números esculpidos a identificar as sepulturas.
Não terminamos muito bem, a falar em cemitérios e epidemias (perdoe-se-nos a coincidência com a actualidade); mas, então, como hoje, a esperança mantém-se e acredita-se que haverá sempre Alguém capaz de nos dar as mãos e de nos libertar dos mais atrozes cativeiros, como aconteceu ao pescador cascalense Luís de Barros.
Na cidade brasileira de Salvador Há uma igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos que foi erigida por subescrição dos escravos da Baía ( desconfio que os “donos mais piedosos” deram uma ajuda ) ,Encontro um ponto de contacto com a informação que o Sr. professor teve sobre a romaria de escravos à capelinha da Srª do Rosário. Bom ano novo.
Sem dúvida, Zé Fernando, que há una relação íntima. Bem haja por no-lo ter recordado.
Conheço bem o Bairro do Rosário, já lá morei, e no entanto nada sabia da origem do seu nome. Como sempre digo, é um privilégio ler os textos de José d´Encarnação para aprendermos sobre a História de Cascais.
Depois gosto destes relatos em que a História é escrita com o colorido da ficção, ou com o tempero dos “prodígios” tão ao gosto dos séculos XVI-XVII. Nessa altura os santos falavam em sonhos, às pessoas, e facilmente se tornavam realidade. Dessa ingenuidade que tecia a lenda muito a História aproveitou, tornando-se mais fluida e apetecível.
Bem haja ao autor pela paciência de investigar estes factos e pela habilidade de os escrever em prosa tão apelativa.
Pois é, caríssima Lena, a História entretece-se de histórias, verdadeiras umas, prodigiosas outras; mas eu dou por mim a perguntar-me se toda esta nossa vida não é isso mesmo: um misto de verdade e de ficção, de realidade e prodígio… Prodígio que é, por exemplo, o de estarmos vivos, de termos o privilégio de usufruir de tantas coisas boas (vamos esquecer as más), de vivermos uma época que nos proporcionou ouvir Carlos do Carmo!…