Purpurinas pelo cabelo e ombros, toilete feita, peguei no saco. Ele apanhou-me à porta num Mercedes vermelho descapotável, bancos e volante brancos creme. Que charme! Chama-lhe a amante, só o conduz em ocasiões especiais. Esta era a ocasião.
Deitado por cima do edifício principal, a parte de baixo do corpo de uma mulher roliça, em tamanho XXL, deixava cair as pernas abertas para a entrada. Era pelo meio delas que se entrava, passando pelo porteiro inicial da casa que, divertido, nos recebia vestido com um fato em forma de preservativo. Originalidade em grande!
Entrei de braço dado com o Carlos, não podia estar em melhor companhia. Subimos a escadaria sem pressas, por segundos senti que caminhava para o altar com um vestido azul escuro acetinado, até aos pés, ombros desnudados, discreto e elegante. Podia ser só impressão minha, mas sentia-me bonita.
Passei num instante pela casa de banho, onde deixei o saco, e entreguei-me aos abraços e conversa com a enorme família que nunca perde um aniversário. É noite de reencontros, de matar saudades, de conversar e rir num contexto de copofonia, numa festa deliciosa com bar aberto.
Estava num sítio de dança, portanto fui dançar, a música é sempre estrondosa. E chegou a altura. Não via a minha funcionária preferida em lado nenhum, pensei rapidamente, subi para um banco. Três segundos depois apareceu um segurança a pedir-me para descer. “Olá, queria mesmo falar consigo. Pode pedir à D. Rosa para ir ter comigo à casa de banho? Ela sabe do que se trata”. Um pouco incrédulo lá pegou no walkie talk. Pela última vez o vestido azul escuro atravessou a sala, ela já me esperava com o saco e um sorriso malandro.
Vestido arrumado, voltei à pista de calças pretas e um top com brilho. Quando se dança em todos os sentidos, o vestido já não serve a ocasião. Como é habitual encerrámos o 1º piso, descemos à pista de dança pura e dura. Falámos menos, dançámos mais, até de madrugada!
Setembro de 2020
Só tinha uma hora e meia, apanhei um táxi. “Há seis meses que ninguém me faz esse pedido”, disse o taxista. “Sim, precisamente seis meses”, murmurei.
Apenas o porteiro estava à entrada. Disse-me me logo que já não podia entrar, lotação de 150 pessoas, cadeiras com a distância obrigatória, máscaras… enfim.
Ao fim de seis meses, o Lux Frágil está entreaberto para promover espectáculos e eventos. Seja no terraço ou no 1º piso as rigorosas regras são idênticas. A equipa podia ter optado por servir refeições e abrir noutro contexto mas decidiu ser fiel à identidade da casa, aqui ninguém come caracóis.
Começou a ouvir-se o som do dj, consegui imaginá-lo a passar música para uma plateia sem ordem para dançar. Acendi um cigarro e fui escutando as mil regras a cumprir, a lei que vai sendo volátil, as expectativas em aberto. Continuámos a conversa séria, mas acabámos por passar para a divertida. Nunca falámos tanto.
Pelo meio explicava aos que iam chegando por que não podiam entrar: a lotação, os horários, etc. Sempre educado, contente pela reabertura, mas cauteloso com o desenrolar dos acontecimentos. Havia no porteiro um brilho nos olhos, sentia-se que tinha a “camisola vestida”, como sempre, aliás.
Seis meses é muito tempo, demasiado. Mas a equipa desdobrou-se logo em iniciativas desde o confinamento, manteve sempre a relação com o público, mesmo que virtual. Uma estratégia feita por pessoas para pessoas. Uma equipa que, mais do que ninguém, sente com certeza o silêncio pelos cantos da casa, a pista desligada, nua, sem vida.
Mas uma máscara não é uma mordaça, e o Lux vai continuar a desdobrar-se em eventos, iniciativas simples, sempre com conteúdo, espetáculos e tudo o mais que ocorrer a esta equipa que resiste desde o primeiro dia ao maldito vírus. Cumprindo escrupulosamente a lei, mesmo que frágil, o Lux voltou a abrir portas.
Despedi-me, agradeci o delicioso bocadinho. Graças ao porteiro, apesar de não ter entrado, estive lá dentro sem ter que me sentar e usar máscara.
Falta ainda algum tempo, talvez um ano ou mais, talvez menos. Ninguém sabe ao certo quando é que se volta a acender as luzes da pista de dança. Mas, nesse dia, acabam-se os beijos e os abraços proibidos. Começa a festa das liberdades, sem mordaças.
Vou levar umas calças e um top num saco, vou entrar à mesma no Lux com um vestido de gala, tal como fiz no 10º aniversário em 2009. Irei direitinha à varanda cumprimentar a Poderosa e a Vigorosa, habituées da casa desde o primeiro dia. Depois dos abraços e reencontros vou dançar até de madrugada. A ocasião assim o exige.
Duas linhas,são mais e …ainda bem.
Um texto, que me agradou, pelas memórias que vieram com alguma “Fragilidade” ter comigo.
A protagonista do vestido azul, é uma estrela, daquelas que a radio de outros tempos dizia a toda a hora “..nove de cada dez estrelas usam LUX”…
Hoje ,com novas normas que o virus impera, e faz, alcançar …mas sem desistência. Mudam-se os tempos…pois é mudam-se algumas vontades, mas a vida deve continuar ,com o que se deve fazer. Todos sabemos, então bora lá ,viver segundo a preocupação vigente, mas sem criar desistências .Acordei de madrugada lendo o texto sorri..ouvi musica e por tal agradeço. Sejamos felizes!
Muito obrigada Augusto Pais Dias.