Quando se vai de mal a pior…

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No final do Estado Novo, perdida a minha aldeola entre as areias e os pinhais da Gândara, nem as mais dedicadas organizações, tais como a prestimosa Polícia Internacional de Defesa do Estado, por ali passavam. E para quê essa trabalheira se, naqueles ares livres de poluições físicas e mentais, até a Bíblia era uma excentricidade de que nem os “intelectuais” dispunham?

Trevas obscuras as que então se viviam, sem uma opinião pública sólida como a atual, firmada numa imprensa livre e que nos dá boa conta do estado da nação. Tempos difíceis aqueles, em que Portugal também ainda não beneficiara dos fundos europeus com que depois construiu aeroportos e auto estradas públicas por onde hoje flui o progresso. E como poderia o nosso país desenvolver-se, sem uma economia alavancada por empresas bem dirigidas como a PT, EDP, TAP, BES, Novo Banco, a par de tantas outras instituições sem fins lucrativos… nem fundo?

Verdadeiro atraso de vida, lá na aldeia até os telefones se contavam pelos dedos de uma só mão. Chegava e sobrava a distribuição postal, um despesão que durante décadas ficou escondido atrás dos quintais e que, só agora, para nossa felicidade, se encontra em desmantelamento. Mas vamos à nossa história, que é o que interessa:

Em terra em que a pequenada ficava de cara à banda ao ouvir rádio, era da competência exclusiva do João dos Correios levar as boas e más novidades a casa de cada um. E honra lhe seja feita que, fiel aos seus deveres profissionais, o carteiro nunca as levava de casa em casa…

Incansável, sem tempo para se coçar, todos os dias o esforçado João calcorreava léguas e léguas, fizesse sol ou chuva. E todos os dias, mesmo! Para quê férias e folgas, luxos da gentinha das cidades e que não pensava no dia de amanhã? Lá no seu Correio, toda a distribuição era por sua conta e risco, até por gozar de saúde de ferro. E, boa verdade se diga, também graças às manigâncias que a sua Chefe facilitava e lhe permitiam que, a “bem da Nação”, ele pudesse substituir-se a si próprio e assim auferir de uns cobres extras.

Boas cunhas, inadmissíveis numa sociedade moderna, mas que o bom carteiro, sem cultura de ética e transparência, nem ilustração, bem reconhecia e também agradecia aos céus que, mesmo nos dias de trovoada, o protegiam. 

Bom a conversar e com incontido orgulho, ele até se gabava de nunca ter falhado um só dia ao trabalho ou ter ficado correspondência por distribuir. De contas certinhas com Deus e os homens, até se desdobrava num ror de recados de que, “serviços por fora”, nem cobrava um tusto. Alguns dos seus conterrâneos ainda reconheciam esses favores com “frutas-da-casa”, mas a maioria assentava a conta noutros canhenhos:

– Obrigado, ó João. E vai com Deus!…

Bênçãos divinas que não evitavam maus-olhados. Pois se até Cristo despertou as iras dos seus conterrâneos, porque havia aquela santa alma de constituir exceção? O velho Zé do Carmo, então, era um que não se conformava com a sorte daquele “fidalgo” que, sem saber ler nem escrever, arranjara um “tacho do caraças”:

– Antes de andar a mamar à nossa custa, ele andava à pata. – Ratava pelas costas, até por pedalar em ferrugenta bicicleta enquanto o “vaidosão” se pavoneava numa motorizada, novinha em folha. – Ao que o mundo chegou! Até a formiga tem catarro. E andamos a pagar para luxos destes…

Não era bem assim, porque os selos até eram baratuchos e, homem de teres e haveres, o Senhor José Santos do Carmo quase nem “décimas” pagava. No entanto, não sendo de invejas ou birras, nem de guardar rancores, não raro utilizava os préstimos do outro:

– Ó João, grande amigalhaço! – Assim lhe interrompia o giro, usando umas falas ainda mais mansas do que as rameiras velhas. – Pára aí um pouco! Pára e lê-me a carta, que eu ando mal das vistas e os doutores não acertam com o meu mal…

Forreta de vender os olhos por dez tostões, assim quebrava o coração do outro que, mais ingénuo do que muitas virgens, por ali se quedava, sempre pronto a traduzir quaisquer gatafunhagens: cenas lancinantes as que chegavam do Brasil, onde se refugiara um rebento do Zé do Carmo para se livrar de sarilhos de saias. Linhas tortas, de ler e reler de alto a baixo, tudinho tim-tim por tim-tim, que o discernimento do velhote era curto. E a dar contas dos seus azares, que eram às carradas, não raro o Zé do Carmo requeria outras e melhores atenções:

– Ó João, entra! Entra e bebe um copo, que tu até mereces que te molhe a boca… – E, franqueado o portão, lá escorregava com um copito mal medido, até porque, antes do almoço, muito vinho podia fazer mal à figadeira. Dias raros esses, mas em que não estava nenhum burro para nascer. Fatal como o destino, aquela adega não podia dar prejuízo: – Olha lá, ó João, tens de me ajudar a escrever uma carta para o meu filho. Quando te der mais jeito, que não há urgência…

E o abnegado João, sempre pronto a ajudar o próximo, nem pestanejava. Ripando da lapiseira azul e, sem precisar que encher o copo, logo correspondia ao pedido:

– É para já, Ti Zé. Até trago aqui papel de carta. Quando chegar ao Correio, é só arranjar um envelope e botar o selo!…

O papel era “oferta da casa”, mas os selos e o sobrescrito custavam os olhos da cara do Zé do Carmo, formalidade que, a fazer-se esquecido, sempre retardava quanto podia. Pagar e morrer o mais tarde melhor, no dia seguinte, à espreita, nunca ele deixava de fiscalizar o servicinho:

– Olha lá, ó João. Por acaso não te esqueceste de…

– Não, Ti Zé! Foi a primeira coisa que fiz, quando cheguei ao Correio…

– Vê lá…

Tudo pelo melhor, até aquele esporádico mas frutuoso intercâmbio se incentivar, mais precisamente quando Marcelo Caetano, o primeiro-ministro de então, teve a lata de atribuir uns “abonos” da Casa do Povo, em demagógica operação com que inaugurou o chamado “Estado Social”. No primeiro lugar da fila, o Zé do Carmo até dispensara os bons serviços do carteiro e, um dinheirão, metera advogado na causa. Sendo dos primeiros a usufruir de tal bónus, que agora lhe chegava mensalmente, por cheque, toda aquela tramitação o punha a rabiar. No fim-do-mês, tão certinho nas contas como o nascer e pôr-do-sol, não arredava pé do caminho:

– Então, ainda não veio nada? – Perguntava exasperado, como a duvidar da competência do carteiro. – O António Vadio e a Maria Carola já receberam?

– Tenha calma, Ti Zé! Este mês, os gajos atrasaram-se. Olhe que ainda faltam muitos…

Compreende-se bem a legitimidade das suas preocupações. A roubalheira estava instalada nesses tempos e, com tanto vigarista à solta e esmola tão grande, qualquer pessoa de bem tinha obrigação de desconfiar. Porém, nem sempre assim era:

– Ó João, hoje vamos festejar com um vinhão… que tu até és um gajo porreiro.

Convidava em dias felizes, quando o carteiro antecipava os prazos. – Para, no final, não raro dar um nó ao ponto e cobrar tanta filantropia: – Olha, por acaso, preciso que me faças um favorzito…

Tudo em santa paz, até ao dia em que o João dos Correios foi portador de uma carta lacrada, dirigida em caligrafia fina e com chancela oficial. O Zé do Carmo até ficou em pulgas:

– Ó carago, parece coisa feia… da Fazenda, da Guarda ou do Tribunal – Logo intuiu, devolvendo o envelope. – Vê lá, depressa, o que isso é. – Implorou de pernas a tremer, enquanto o carteiro analisava a papelada. – Despacha-te, homem de Deus!…

Com efeito, o outro só podia confirmar os seus piores presságios:

– É da GNR… E é por causa da licença dos cães, que têm de ter as vacinas contra a raiva. Eu bem o avisei que devia tratar disso…

– E agora?…

– Agora, chapéu! Aplicaram-lhe uma pastilha de oitenta mil réis e já não há nada a fazer…

Era coisica pouca para quem usufruía de uma “reforma” tão valente, mas, assim de chofre, a retambana do João logo havia de pôr a nu as mais íntimas convicções do outro:

– Porra!… E tu ainda acodes por esses ladrões? – Arreou ele, passado dos varais. – Cão e raivoso és tu, meu sacaninha de merda! Um grande amigo me saíste, não há dúvida! – E com o carteiro meio aturdido, a dar ao pedal da motorizada para se pôr a salvo, ainda fazia figas: – Sumam-se, tantos comedores!…

Passou meio século, mas nunca mais esqueci o meu amigo João dos Correios, um paz-de-alma que fazia o bem sem olhar a quem. Tendo, contudo, nascido menos “cândido” do que ele, entendi reciclar hoje esta velha história. Sem boas mensagens para vos entregar, concluí ser mais avisado contar-vos esta anedota e prevenir-me assim contra algum Zé do Carmo que, felizmente em vias de extinção, ainda possa por aí andar.

– Sumam-se, tantos comedores!…

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