Às vezes, lembro-me do velho texto de um dos meus livros de aprender a ler, “ADEUS, ARROZ-DOCE”, que remetia para a festiva refeição familiar, onde havia uma criada que, ao passar com a travessa de arroz doce, não esquece a ordem dos amos. O miúdo fizera qualquer travessura e o castigo fora a privação da guloseima, o que o levou à melancólica queixa do rapazinho – Adeus, arroz-doce! –, mal a criada passou deixando para trás aquele mavioso cheirinho a canela… Imagino eu, agora, que uma velha tia, ou talvez a mãe, o terão compensado, mais tarde, na cozinha, às escondidas do pai.
Isto para dizer que, nessa lonjura, já, dos finais da primeira metade do século XX, o arroz-doce era infalível receita nas festas dos portugueses.
Do arroz sabemos que teve seu berço, não sei há quantos milénios, na Ásia longínqua e a poderosa e fecunda gramínea chegara a terras lusas com os Árabes, permanecendo o seu uso no Sul, antes de irradiar para Norte, apenas a partir do século XVIII.
Não ficaram notícias do seu uso mais antigo, mas esse primeiro Livro de Cozinha da Infanta D. Maria – a distinta neta de D. Manuel I a quem o livro se deve, mesmo que não tenha sido ela a reunir as receitas – traz-nos eco ainda desse austero tempo de finais do século XV: uma receita em que o arroz, o leite e o açúcar entram num manjar que ali guarda o nome de beilhoz de arroz com açúcar.
Domingos Rodrigues, que viveu entre 1637 e 1719, o mestre de cozinha que terá servido nobres e, porventura, a Corte, guardou uma avara receita de arroz-doce no seu livro Arte de Cozinha: um arrátel de arroz, uma canada de leite, um arrátel de açúcar, água de flor e canela a polvilhar.
O guloso século XVIII irá desenvolver, nas mansões fidalgas e nos recatados cenóbios, o gosto pelas gulodices e o arroz-doce ali encontrará caminho de nobreza, até se democratizar, num tardio século XIX, onde se faz manjar de eleição das camadas populares, no sentido lato, com assento nas cerimoniais refeições das festas do orago, nas bodas de casamento e baptizado e outras datas festivas.

Popular permaneceu por essas aldeias fora e ainda resiste, apesar do vazio que nas mesmas acontece, receita de avós salvaguardada nos dedos e paladares de netas saudosas.
Popular permanece, na raiz, ganhando foros de distinção, quando a travessa de arroz-doce se nos oferece, cativante e apetitosa, sobre a moderna tábua de sobremesas de uma virtuosa casa de restauração.


