JÁ OS ROMANOS AQUI VINHAM ADMIRAR O PÔR-DO-SOL

In occasu Sol, aeternus Sol

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fotografia de Teresa Simões

Chilreiam os pardais em esvoaçante jogo. Entra este numa das cavidades dos tijolos de parede da casa. Sai logo para o fio telefónico defronte. Outro o saúda e voa sem direcção definida. Alegre, a algazarra – dir-se-ia. É o entardecer que se aproxima, o desejo de um nocturno sono repousante. Ganha a atmosfera coloração mais suave, neste começar de Junho.

Abandono, por instantes, esse ambiente de bairro suburbano e o meu pensamento esvoaça, ele também, para as franjas do Atlântico. Imagino-me a caminhar, sereno, pela orla marítima, desde Cascais até ao Guincho, nas faldas da Serra de Sintra. Passam, rentes à água, bandos de patos bravos, em fila indiana. De bicicleta ou a pé, em corrida ou passo lento, ocasionais companheiros de viagem saboreiam, também eles, a dolência do dia que decidiu ir descansar. Desistiu o mar de ser altivo, prefere enviar ondas pequenas umas atrás das outras, perladas de alva espuma instantânea. Tal como os pardais suburbanos, as ondinhas parecem divertir-se, preguiçosas. Sorriem as florinhas silvestres da ímpar vegetação da orla. Está tranquila a duna grande; mui leve é, de facto, a aragem.

Não quero, porém, quedar-me aqui. Embrenho-me pela frescura do pinhal, demando a Malveira da Serra, passo ao lado das Almoinhas Velhas, da Biscaia, da Figueira do Guincho. Rumo não à ponta mais ocidental do continente europeu, o Cabo da Roca, mas um pouco mais além.

Trago na mente o eco daquele poema de Eugenia Serafini, a ilustrar as coloridas pinceladas do pôr-do-sol: «Últimos voos / despertam desejos / d’oiro ao sol-pôr!» – Ultimi voli / guizzano desideri / d’ORO / il tramonto.

Haikai de Eugenia Serafini.

Quero ver no Alto da Vigia essas aves – patos bravos serão? Gaivotas?… – a escaparem-se em busca dum abrigo, riscando de negro o suave alaranjado do poente. Impregnado de magia está esse Alto. Basta ver o mar, basta escutar o Sol a descer – para que nos inebrie o Génio do Ocaso.

Sinto que há um Génio ali. Sentiram-no os Romanos também. Não tinham ainda os necessários conhecimentos cartográficos para deixarem de parte o Finisterra, lá nos confins da Galiza, que, afinal, não era o fim do continente. O fim do continente era ali, no Cabo da Roca e no Alto da Vigia, paredes-meias com ele.

Bem cedo esse espírito divino terá ganhado fama de muito renome. Doutra forma se não entenderia por que razão os legados imperiais romanos faziam questão em peregrinar até ali. Não deveria ser fácil; o impulso divino, contudo, era maior! E mandaram gravar lápides, sintoma de que não era gesto esporádico, momentânea pulsão. Era devoção mesmo! Vontade expressa de assegurar o apoio divino.

SOLI · ET · LVNAE / L(ucius) · TVL(ius) ·TIGIDIVS / PERENNIS / LEG(atus) · AVG(usti) · PR(o) · PR(aetore) / PROVINCIAE· LVSITANIAE

Ao Sol e à Lua – Lúcio Túlio Tigídio Perene, legado de Augusto, propretor da província da Lusitânia.

SOLI AETERNO / ET LVNAE / PRO AETERNITATE IM/PERI(i) ET SALVTE IMP(eratoris) …

É extensa dedicatória, feita pelo vir clarissimus, legatus Augustorum, Decimus Iulius Valerius Coelianus, pela saúde de Septímio Severo e de Júlia Domna, mater castrorum, datável de 201, inícios de 202.

Temos uma dedicatória ao Sol Occiduo et Oceano; e o vir egregius Lucius Aelius Paulus, procurator provinciae Lusitaniae, invocou Sol Invictus pro sua et suorum salute.

Sol Occiduo et Oceano. Cliché de Cardim-Ribeiro.

Quem diria? O Sol e a Lua e o Oceano, irmanados; o Homem, seduzido! Ali.

Chegou-nos um desenho antigo a mostrar que, em torno de majestosa epígrafe, dedicada precisamente ao Sol e à Lua, se instalou no terreiro uma série de ex-votos em círculo, qual eco de pré-histórico cromeleque (Fig. 3).

Desenho de Francisco de Holanda, 1571.

Recolhe-se o Homem aonde quer. À solitária cela do seu mosteiro. Sobre uma rocha, a olhar o mar. Junto a precioso canteiro do seu jardim, a ver como, paulatinamente, as pétalas a as corolas se fecham sobre si mesmas, à medida que a luz diurna diminui.

Vendo o Sol a mergulhar lentamente e o sereno voo das aves – como Eugenia Serafini – pode, quiçá, ser esse o ambiente melhor para meditação transcendental.

Para os Romanos, aqui, foi. Para nós, há-de ser.

Que o ocaso jamais é um fim: esconde e promete o renascer.

In solis occasu, aeternus Sol.

Essa, a nossa maior consolação!

                                                                                  

Para saber mais

  • Encarnação (José d’), «Era aqui que Febo adormecia» (This was the place where Phoebus fell asleep), Estudos Arqueológicos de Oeiras 22 2015 315-328. http://hdl.handle.net/10316/32802
  • Ribeiro (José Cardim), Escrever sobre a margem do Oceanus: epigrafia e religio no Santuário do Sol Poente (Provincia Lusitania). Sylloge Epigraphica Barcinonensis Anexos III, Universitat de Barcelona, 2019.

5 COMENTÁRIOS

  1. Irene Vaquinhas
    4 de março de 2025 08:45
    Parabéns pelo teu texto. Gostei muito. Um texto lindo para se ler… ao amanhecer… Creio que tenho uma “alma de romana”: também adoro ver o pôr-do-sol sobre o mar.

  2. Victor Martins
    4 de março de 2025 09:50
    Bom dia Zé. Desde que o Trump não venha para cá ver o brilho das nossas coisas, para comprar… já temos muitos humoristas por cá. A evocação é bucólica, nem Teócrito conseguia dizer as paisagens como as nossas, com um conjunto de viagem que nos arromança o bem-estar. Cada brisa é um momento, cada contraste de luz nos pinheiros é um colírio.

  3. Boa tarde Ze, um belo texto que é também ele um poema.
    O Epigrafista-Poeta sentiu o chamanento do, ou da, Finisterra, conforme se pense no ponto extremo da Terra, ou na ponta final dela, onde o mar começa. Escrevo isto por usar mais vezes o termo como nome feminino.
    No mar o sol se põe, mergulhando escondido sob as águas, enquanto a lua faz a sua vigília.
    Se os romanos invocaram esses elementos e lhe atribuíram tal importância, está explicada a razão pela qual os habitantes autóctones da Península também veneravam a “agonia” do sol nas águas e a entendiam como prelúdio de um renascimento.
    Um grande abraço.

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