Não se imagina como chegou até nós, vindo de um tão longínquo tempo, este ritual, este repetido gesto de em cada ano – cumprido o tempo festivo das colheitas, adormecidos os campos, mais soltos os braços do arado, da enxada ou desses outros mesteres de um tempo novo, quando também um mais luzidio tempo que a tradição nos faz designar por Verão de S. Martinho rememora as quenturas do Verão – de depositar por esses Campos Santos, esses Jardins de Memória, às vezes tão só uma rosa, às vezes flores aos braçados, flores que tantas vezes se misturam às lágrimas.
De bem longe chegou este gesto.
Vão mais de 50 000 anos.
O Homo Sapiens, que somos nós, estaria já dando os primeiros passos. Mas é ainda o seu predecessor, o Homem de Neandertal – que com ele partilha, em boa parte, o ADN que nos distingue, em cujo peito já demoravam sentimentos desta saudade cujo nome mais tarde se inventou – é este homem, as figuras femininas talvez, quem pela primeira vez solta sobre o corpo para sempre “adormecido” de um irmão, nesse jeito de estar que lhes veio do seio de uma mãe, mãos cheias das flores silvestres de uma terra que não ganhara ainda estatuto de jardim.
Quando, mais de 50 000 anos depois, se abriu a terra numa planura do longínquo Curdistão iraquiano, junto aos restos de um corpo que ainda “dormia” havia restos do pólen das flores ali despejadas nessa longínqua era.
Não sabemos o nome desse alguém que ali ficara, num chão que depois se abandonou. Os arqueólogos dão-lhe hoje o nome de Homem de Shanidar, o nome do chão em que por tanto tempo permaneceu.
Desde então, os homens que depois vieram repetiram estes gestos de memória e saudade, depondo flores, largando perfumes ou abandonando junto do companheiro objectos de uso ou estimação para uso de uma vida que, noutro lugar se retomaria.
Isso fizeram os homens que depois vieram.
No Egipto, na Pérsia, na Índia, na Grécia, em Roma. Homens de todas as Culturas. Homens de todas as Religiões. A Cultura cristã que sobremaneira nos toca.
E, no Dia dos Fiéis Defuntos, termo antigo na reguladora Folhinha da Liturgia cristã, neste tempo lunar em que a terra mais entra em repouso, nos Campos Santos acendem-se velas para que a luz permaneça, pousam-se flores aos braçados, deixam-se, às vezes, cair duas lágrimas.
E quem ali adormeceu viverá mil anos como o Homem de Shanidar.