A primeira vez que ouvi falar de santa Agatemera foi, nos anos 60, por intermédio da D. Rosa “Ferre velha”, que tinha a sua loja e arrecadação, na Rua dos Prazeres, na Amoreira, Alcabideche.
A D. Rosa trabalhara, em nova, como criada na Quinta de Manique, provavelmente nos anos 20 ou 30 do século XX. Segundo me disse, existia na capela da quinta uma múmia guardada numa caixa envidraçada, sob o altar, tendo parte do corpo ainda “coberto de carne macia”. A capela encontrava-se interditada ao culto, porque, em determinado ano, não se sabendo qual, os proprietários tinham dado uma festa e utilizaram o templo como salão de baile.
Por volta de 1973, contou-me D. António de Castelo Branco, que, nos inícios do século XX, era hábito, ele e os irmãos deslocarem-se em charrete à Quinta de Manique, propriedade então dos Condes de Azambuja, para ali passar o dia com os primos da sua idade, e que era ali que passavam férias. E também ele me falou da múmia.
A primeira vez que entrei na Quinta de Manique, era então proprietária a Condessa de Casteja, foi já em 1982, com Carlos Teixeira, quando andávamos a recolher informações e fotografias para um número especial sobre Manique de Baixo, publicado no Jornal da Costa do Sol, em 21/7/1983.
Fomos então encontrar sobre o altar, no interior de vitrina tapada por um reposteiro, por detrás do sacrário, a múmia de Santa Agatemera, de que D. Rosa me falara.
Afastado o reposteiro, pudemos ver a cabeça, com uma grinalda de flores, cara coberta com máscara de cera, sem olhos, ligada a um esqueleto articulado por arames, deitada sobre o lado direito, envolta num tecido transparente dourado, luvas prateadas e com uma coberta de tecido colorido decorado com flores.
Na sacristia, encontrámos uma lápide epigrafada, de mármore branco, com a inscrição que o professor José d’Encarnação datou, pelo tipo de letra, do período paleocristão, e onde leu:
AGATEMERA / D(omini) IN P(ace) XII (duodecimo die ante) K(a)L(endas) FEB(ruarias): “Agatemera na paz do Senhor no 12º dia das calendas de Fevereiro”, ou seja, a 21 de Janeiro. Omitindo-se o ano; o mistério permanece.
A primeira referência a Santa Agatemera é dada pelo pároco de Alcabideche, Padre Fortunato Lopes Oliveira, em 1758, quando respondeu ao inquérito do Marquês de Pombal:
«Procurámos saber junto da Sr,ª D. Jesuína Damião, pessoa muito conhecedora dos assuntos de Manique, o que haveria neste caso. Disse-nos apenas que seu pai, que faleceu com 102 anos, se referia sempre à santa e que nunca outra cosa ouvira dizer que não fosse a sua oferta por um papa ao Sr. Marquês. Contudo, endereçou-nos para o Sr. José Pereira Ribeiro, de Lisboa, para, por seu intermédio, contactarmos a Sr.ª Condessa de Azambuja, filha de uma das antigas proprietárias da Quinta. Assim foi, e aquela senhora, que muito amavelmente nos atendeu, nada nos pôde dizer, a não ser confirmar-nos o que havíamos encontrado escrito.
Quisemos levar, porém, mais longe a nossa investigação e, por isso, dirigimo-nos ao Patriarcado de Lisboa, solicitando informações a tal respeito.
Recebemos do cónego Isaías da Rosa Pereira (doutor em Direito Canónico e professor na Faculdade de Letras) a seguinte resposta:
«Informo que nada se sabe acerca do assunto; no arquivo da Cúria não há nada a esse respeito; seria bom reunir tudo o que aí for encontrado para uma futura identificação».
Em face disso, escrevemos à Nunciatura Apostólica, pedindo o favor de, se possível, nos esclarecerem, junto do Vaticano, sobre qual o significado da múmia e, eventualmente, o verdadeiro nome da santa.
Teve o Núncio Apostólico a amável deferência de nos responder da seguinte forma:
«Reportamo-nos às v/ estimadas cartas de 21 de Outubro de 1982 e 4 de Março último, com as quais exprimiam o desejo de obter algum esclarecimento sobre a proveniência de um corpo mumificado existente numa capela, em Manique de Baixo.
Só hoje aqui foi recebida resposta ao pedido que esta Nunciatura Apostólica dirigiu repetidamente ao Arquivo Secreto Vaticano, sobre o assunto. Cumpre-me, pois, informar que, infelizmente, as buscas de arquivo efectuadas naquela repartição não deram qualquer resultado».
Em face de tais documentos, de origem absolutamente válida e idónea, nada mais nos restou do que, pegando nas palavras escritas por D. Martinha de França Pereira Coutinho, em 1900, no livro A Cultura do Concelho de Cascais:
«No lugar de Manique de Baixo existe o palácio do Marquês das Minas, onde se destaca, pela sua riqueza, uma pequena ermida, toda de mármore, a que os habitantes da localidade e seus arredores chamam Santa Agatheméra ou Cathaméra (o que de certo deve ser corruptela); entre o povo corre a lenda a respeito da curiosa e quase ignorada relíquia».
O êxito foi muito pequeno, para não dizer nulo. As gentes que hoje habitam Manique – algumas nem conheciam a existência da múmia – pouco ou nada sabem do caso.
Houve alguém que nos afirmou, sem a menor prova, que seria o corpo duma jovem que, após longo tempo de enterramento, teria, no acto do levantamento, aparecido incorrupto; outra pessoa, esta mais da tradição, contou-nos que a múmia era duma jovem que, em conjunto com mais três irmãs, teriam sido consideradas santas.
Não conseguimos, naturalmente saber mais nada, a não ser que, de facto, não se conhece, no Agiológio, santa com esse nome, que é de origem grega e significa «bom dia».
Não é fácil datar a origem da Quinta de Manique, mas será certamente do séc. XVII. No séc. XIX teve vários proprietários e denominava-se Quinta do Reboredo, por então pertencer aos viscondes de Reboredo. A Quinta passou para uma filha que foi marquesa das Minas, passando assim a ser conhecida por Quinta do Marquês ou da Marquesa. Os seus últimos proprietários foram os condes de Casteja (1983).
Ao longo dos anos sofreu várias obras que deixaram marcas de épocas históricas diferenciadas. Por todos os espaços proliferam conjuntos azulejares, principalmente azuis e brancos. A capela é setecentista.
Na tese de doutoramento de Joana Palmeirão, defendida no ano passado, existe uma relação do historial da quinta, onde se declara que a mesma terá sido edificada pelo sargento-mor Francisco Correia e sua mulher, na segunda metade do século XVII, segundo pesquisa da empresa LMT Abreu Loureiro, Correia de Matos e Galvão Teles – Consultores em História e Património, que fizeram a investigação sobre o assunto (Palmeirão, 2023, p. 105-109).
A pouco mais de 600 metros para sul da quinta de Manique, existe nos Miroiços, já na freguesia de S. Domingos de Rana, um antigo terreno murado, de lavoura, onde localizámos, em 1999, através de uma escavação arqueológica realizada com José d’Encarnação, uma muralha e uma necrópole romana e da Antiguidade Tardia. Quando decorriam os trabalhos, apareciam, como é hábito, moradores das redondezas, curiosos, para verem os vestígios escavados.
Foi durante o período de escavação que apareceu no local a filha de D. Jesuína Damião, que contou à Dr.ª Lurdes Trindade Niewendam, que era tradição que, naquele terreno, chamado Rossio dos Moços, fazer-se uma feira a 1 de setembro, aonde os pais levavam os filhos com idades entre os 8 e os 12 anos, para obterem trabalho durante uns anos e assim aliviarem o encargo familiar. Os jovens eram muito novos, pelo que eram usados como criados de servir nas casas mais abastadas, onde iam buscar água, lenha, faziam recados e guardavam rebanhos. O seu pagamento era a alimentação, um lugar para dormir e pouco mais. Será que este mercado de trabalho para jovens não seria a 29 de setembro durante os festejos em honra de Santa Agatemera?
Rui Manuel Mesquita Mendes
A referência constante na memória de 1758 é «Rodrigo de Sande» e não, como é referido, por lapso, «Rodrigo de Sanches».
Esta era até pouco, de facto, a primeira referência escrita que se encontra de Santa Agathamera ou Santa Águeda que, tudo indica, foi ali colocada por Manuel de Sande e Vasconcelos, tesoureiro-mor da Junta dos Três Estados, que vinculou a propriedade a um morgadio, depois de a ter adquirido por arrematação a Francisco Correia, que foi o fundador das casas nobres e ermida de N.ª Sr.ª do Pilar (1682).
Todavia, convém dizer que a Confraria de Santa Ágata, Agathamera ou Águeda, foi instituída na Ermida de Manique de Baixo por Provisão de 2 de Julho de 1750 (Fig.).
As diversas licenças para as festividades de Santa Agathamera que registei entre 1773 e 1822, todas foram concedidas no mês de Setembro.
A referência aos Marqueses de Minas apenas aparece no início do séc. XIX:
AVISOS.
José Caetano de Sá Almeida, e sua mulher D. Marianna de Sande publicão ser do vinculo instituído por Manoel de Sande e Vasconcelos falecido em 1745, e de que se tomão contas na Provedoria das Capellas em Lisboa, a quinta e mais fazendas sitas em Manique de baixo que as Baronezas de Stockler offerecem em pagamento da Execução, que lhe faz o curador da casa de D. Brás da Silveira, pela divida contrahida em 1748, por D. Anna Dorothéa de Sande Vasconcellos de 80:000$réis, no Cartorio do Escrivão das Commissões, e isto pelos direitos que tem ao dito vinculo, por cuja subsistencia tem protestado.
Gazeta de Lisboa, 22-5-1819
No dia 30 do corrente de tarde, em casa do Desembargador Amaral à Boa Morte, se arremata a quem mais der a laranja e limão da quinta de Manique de baixo, pertencente ao Excellentissimo D. Braz da Silveira.
Gazeta de Lisboa, 20-12-1820.
muito interessante este comentário que complementa a história contada no artigo. obrigado