O ‘baile nas trombas’ e os ‘jogadores do outro mundo’

LEMBRAR MÁRIO WILSON

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“É isso… um baile nas trombas! Um baile nas trombas! É isso!”. Jogávamos no campo do Torreense (de Manuel Cajuda), um dos três clubes que viriam a ser promovidos à primeira divisão nacional nessa segunda liga de 1990/91, juntamente com o campeão Paços de Ferreira (de Vítor Oliveira) e o vice-campeão Estoril (de Fernando Santos).

Fazíamos um enorme jogo; e essa era uma das enérgicas expressões que Mário Wilson utilizava durante os treinos, quando uma equipa dava um ‘banho de bola’ à outra.

Em Torres Vedras, era isso que o Recreio Desportivo de Águeda fazia. E Mário Wilson, 61 anos à época, entusiasmava-se no banco, que ficava contíguo ao cordão de ferro do Estádio Manuel Marques onde se apoiavam, para se debruçar em direção ao terreno de jogo, muitos dos espetadores locais.
“É isso o quê, seu velho de m…!!!”. A uns vinte metros, alguns idosos sócios do clube local reagiam rudemente ao vozeiro de Mário Wilson, que entoava como um tenor, e ao ‘banho de bola’ que a sua equipa inesperadamente levava em campo.

Mário Wilson, permanecendo sentado, rodou então o tronco com o vagar que o seu corpanzil ordenava; professoralmente, num tom moderado, questionou quem o invectivava: “Não posso dizer à minha equipa que está a jogar bem?”.
Os idosos, surpresos, entreolharam-se e nada disseram. Mário Wilson voltou a questionar melodicamente:
– “Eu quero que a minha equipa jogue bem, vocês vêm aqui para ver bom futebol, não é?” 
– “Bem… é!” – responderam, hesitantemente…
– “Eu, quando estava no Torreense, também queria que jogassem bem e dessem um baile nas trombas!”
– “Pois era, pois era!…” – responderam, entusiasticamente.
– “Então… posso continuar a incentivar a minha equipa?”
– “Pode! Pode!” – responderam, convictamente!

Recreio de Águeda – 1990/91 – Segunda Liga/Liga de Honra, Mário Wilson como treinador

“À RASCA!”

Em Águeda, com o Estoril, empatámos a zero – inoperância nossa… – mas o líder de então viu-se aflito; defendeu muito atrás, chegando até a aliviar uma bola para além da bancada do lado do rio, que só parou nos campos de cultivo.
– “À rasca!”.
Atraído pela costumada expreesão em treino, olho o meu vizinho no ‘banco’ e vejo-o a saltar como uma mola, entusiasmado com a pressão que a equipa fazia a tão distinto e favorito adversário. E, ao intervalo, eram bem audíveis os berros de Fernando Santos – futuro treinador do FC Porto e da seleção – para com os seus jogadores, no modesto casebre que acolhia os balneários no nosso estádio, para expressivo encantamento de Mário Wilson.
Em Coimbra, quando defrontámos a Académica, a deslocação desde o túnel de acesso aos balneários até ao banco de suplentes destinado à equipa visitante foi momento arrepiante: a ‘bancada’ coimbrã prestou tribuno com estrondosa ovação, de pé, ao seu ex-jogador e treinador, até que Wilson se sentasse.

“DEPOIS DISTO NÃO HÁ MAIS NADA! JOGADORES DO OUTRO MUNDO!”

O falecimento do Borras – meu guarda-redes dos juvenis e juniores que se estreara, para meu orgulho, na baliza do Recreio quatro dias antes daquele fatídico acidente – foi dia de comoção. Tomámos conhecimento quando chegávamos ao estádio para treinar à tarde. Dirigimo-nos para o hospital, ainda com a ténue esperança de que as notícias fossem mentira. Confirmado o óbito, regressámos. Não sabia o que fazer… Mário Wilson deixou-me completamente à vontade. Decidi que o melhor seria ir para o campo e outros jogadores de Águeda – seus colegas no crescimento – seguiram-me. Só chorava! O Zé Maria passava por mim e só dizia “força, Semedo!”. No final, já no balneário, Mário Wilson disse-me: “Mostraste enorme carácter!”.

Foi um ano chuvoso, impróprio para manter o único relvado em boas condições. Exigiu que muitos treinos fossem transferidos para os campos ainda ‘pelados’ do Mourisquense e da Laac.

Os treinos de conjunto, como eram chamados, terminavam invariavelmente após duas ou três jogadas bem delineadas pelo ‘onze’ base, com a complacência da equipa da ‘coca-cola’ nos derradeiros 10 minutos do apronto. Mário Wilson apitava vigorosamente, levantava-se do ‘banco’ e exclamava com clamor: “Depois disto não há mais nada! Jogadores do outro mundo!!!”. E os jogadores dirigiam-se para o autocarro, regressando encharcados e enlameados até ao Municipal de Águeda.

crónica do jornal o Jogo em 13 de março de 1991

MEMÓRIA

Nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo) em 17 de outubro de 1929, faleceu em 3 de outubro de 2016. A 13 de julho de 1990 foi feito Comendador da Ordem do Mérito. Treinou o RD Águeda em 1990/91 na atual 2.ª Liga. Depois disso, Mário Wilson – campeão nacional e selecionador na década de 70 – viria ainda a vencer uma Taça de Portugal pelo ‘seu’ Benfica.

Publicado também na edição de 16 de outubro de 2024 do jornal semanário Soberania do Povo (fundado em 1879)

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