GALANTEIOS

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imagem construída com recurso a IA

Será que, hoje, é possível dizer um galanteio sem que seja logo bruscamente interpretado como «tentativa de agressão sexual»? Sem um «O estapor do homem, querem lá ver?»? Sem uma resposta brusca? Ou, mesmo, sem uma atitude de fuga, como se lobo mau se estivesse a ver?

Temo que não.

E lamento.

Primeiro, porque o verdadeiro galanteio deve ser encarado como suave, simpática e até corajosa frase de apreço; depois, porque, sendo bem compreendido, enaltece o ego de quem é galanteado e consola quem o proferiu!

Urge repor o galanteio no seu verdadeiro lugar no quadro do relacionamento entre as pessoas, numa altura em que sentimos que cada um procura fechar-se na sua concha e nem liga a quem lhe passa ao lado. Além do mais, é perigosa essa distanciação.

Passei, outro dia, ao lado de uma senhora já na casa dos 80, minha vizinha, e não  ousei sequer falar-lhe: ela estava na rua, mas tão ensimesmada no que estava a fazer, que não deu por mim, que lhe passei a dois passos. Fiquei com a sensação nítida de que, se algo lhe dissesse, em qualquer tom que fosse, ela se assustaria, como nos acontece quando, de repente, um automobilista buzina. O perigo que tal significa! Era eu, um vizinho, conhecido; mas podia ser outra pessoa, sabe-se lá com que intenções!

Preconizo muito, por isso, a saudação ‘bom dia’, ‘boas tardes’, ‘boa noite’. Ou um simples ‘olá!’.

E fico a pensar no que será a penosa vida daquele senhor dr. médico, sisudo, que estaciona o carro ao pé da minha porta e que nem responde quando lhe desejo ‘bom dia!’ e olha para mim de soslaio, como se de um extraterrestre se tratasse. Extraterrestre… eu ou ele?

A Adelina foi de férias para uma estânica balnear. Pôs fotografia a condizer na página do Facebook. Houve quem comentasse «Very sensual, my dear, very sensual indeed!». Resposta: «Grande elogio! Beijos!». «Grande, mas verdadeiro», respondeu o do galanteio. «Obrigada! Esse elogio foi assim como uma cereja no topo do bolo». Ora aí está uma troca de mensagens como se impõe!

O Alberto preparava tudo para fotografar o pormenor dum monumento no centro histórico de Évora. Era manhã cedo, urgia aproveitar a melhor inclinação dos raios solares. Passa uma senhora de mui agradável aspecto:

– Ora viva quem é uma flor!

– Sim, sim, mas olha que tem jardim!

– E que bem perfumado será, tenho a certeza!

Todos riram. A flor continuou e… o Alberto foi-se à fotografia! A mulher alentejana tem esse jeito de não deixar cair uma no chão – e vamos à vida!

O Alberto é um camaradão. Nasceu também ele no Barrocal algarvio, aquela região que só a Serra separa do Alentejo, mas em que o pessoal, no fundo, é assim todo meio irmanado com o Aleixo, de verbo fácil, espírito matreiro, mas sem maldade. E as mulheres… Eu deveria escrever ‘senhoras’, mas recuso-me, porque ‘senhora’ dá assim um ar importante, distante, e no Barrocal e no Alentejo a mulher é para estar na vida, a labutar, a responder quando for preciso. Pois também as mulheres participam aí desse ar azougado e malandreco, com conta, peso e medida.

Contou-me então o Alberto que, outro dia, não resistiu. Estava de visita a uma familiar num lar e passou uma senhora doutora (eu aqui ponho ‘doutora’ por extenso para distinguir do tal de que atrás se falou). Passou a senhora doutora, dona de uns olhos dum azul vivo, cerúleo, daqueles que uma pessoa não se cansa de admirar, louvado seja o Criador! E vai daí o Alberto:

– Devia ser proibido ter uns olhos tão bonitos!

A senhora sorriu, deliciada: «Obrigada!». Todos sorriram, alguns ainda não tinham reparado como eram lindos os olhos da doutora e a tarde ganhou mais coração.

Mas doutra vez não teve coragem. Não se proporcionou bem a ocasião, havia mais três pessoas e o cachorro. Lembram-se daquela frase da belle et la bête das exposições caninas, em que modelos femininos fazem a passarela com os seus bichos e a gente acaba por confundir tudo e não sabe para onde é que deve olhar? Pois isso lhe aconteceu: o cachorrito teria pedigree, sem dúvida; mas a dona!… Nesse dia, decidira mostrar-se qual cariátide do templo do Erecteion, erigido na Acrópole de Atenas, sem, porém, as túnicas ondulantes das gregas, mas com um daqueles fatos tipo desporto que mostram em plenitude um corpo escultural. Alberto (confidenciou-me!) esteve quase para ir ao pé da jovem e garantir-lhe em sussurro «Menina, aqui está a verdadeira amostra da belle et la bête, uma maravilha!». Não teve coragem e certamente a jovem, pelo dia afora, teve quem lhe dirigisse serenamente um bom galanteio – que, senhores, a Beleza quase é pecado se nos obrigarem a apreciá-la em silêncio, só para nós!

Voltando ao meu bairro e deixando o Alberto da mão, direi quanto é agradável desejar «bom dia!» e receber um sorriso. Ou abrir a porta para a escada, no hospital, para deixar passar um senhor ou uma senhora e receber «bem haja!» ou o mais normal «obrigada!», acompanhado por um leve sorriso. O dia corre melhor!

cena da peça de teatro “Galanteio para quem?” da companhia brasileira CIA no Centro Cultural Usiminas, Ipatinga, Minas Gerais, Brasil

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