Pertenço a um tempo em que as cartas, os postais e os telegramas, tão temidos como desejados, nos suscitavam emoções e sentimentos, naturalmente indissociáveis e de vários tipos, mesmo antes do acto, por vezes reservado e retardado, da sua leitura.
Como não recordar, por exemplo, e sem menosprezar memórias mais pacíficas, a chegada do correio a um qualquer aquartelamento em terras africanas, lembrando neste caso um episódio no Lufico, em Angola, quando se recuperou no mato, numa acção de perseguição, um saco de correio perdido numa emboscada e nele se encontraram cartas atravessadas por um projéctil.
Não falo por razões de simples saudosismo mas sim motivado por um sentimento de humanidade nostálgica, a caminho de se perder esmagado por um excesso de tecnicismo pretensamente eficiente, tantas vezes desnecessário, a que agora se veio juntar a ameaça final – ainda não totalmente compreendida – da “Inteligência Artificial”. Dirão alguns que se reflecte aqui a tradicional aversão pelas tecnologias de alguém de formação humanista, mais ou menos literária e pouco prática, do que me eximo invocando o meu percurso inicial nas Escolas Técnicas, com passagem pelo Instituto Industrial. Não posso deixar de ver na tal “Inteligência” um caminho para “ditadura científica” que Huxley invocou em 1949.
Quando se abdica do acto de pensar o que se pretende transmitir, seja o que for, e se incumbe uma máquina de o fazer por nós, abdicando dessa operação essencial que é o raciocínio, desde sempre considerada o apanágio definidor da condição humana, então o desastre que Spengler previa em 1916, o triunfo da Civilização sobre a Cultura, está próximo. Dirão – é mais rápido, é mais prático, é ecológico. E daí? Que se ganha humanamente com isso? O não pensar é sinónimo de quê? Que fazemos com o tempo ganho quando abdicamos do pensamento? Na verdade, em nome de progressos, ou assim considerados, que nos são obrigatoriamente impostos, quer de forma institucional, quer por uma legião – mal empregada palavra – de influencers, não menos numerosos que os múltiplos comentadores que nos oferecem quotidianamente análises de todas (?) as desgraças deste mundo, a par de algumas maçãs tentadoras, declinamos uma das principais funções da Liberdade.
Mas, com isto tudo estou a afastar-me da caixa do correio e da sua actual langorosa utilização. Ontem também não veio nada, uma revista e pronto. Na verdade, e esta é uma verdade muito dura, sei que a única carta que desejaria receber nunca chegará, não pode chegar. Todavia, tenho outras, de outros tempos e de outros cenários e com elas vou revivendo o passado, se isso é possível fora de Brideshead ou fora de nós próprios. Na falta de cartas, na velha tradição, já me contentaria com postais ilustrados, não daqueles que existiram há décadas e cujo envio tinha uma franquia de 50 centavos (meio escudo), o que, em termos “eurísticos” significa que com o valor da unidade base do novo sistema monetário poderíamos enviar 400 postais, o que confere à palavra inflação um novo significado.
Prefiro, naturalmente, os postais ilustrados – cartes postales como se designavam ainda no princípio do século passado, reinando a francofonia – postais que também vão rareando. De facto, já não são vulgares, embora eu solicite muitas vezes que me distingam com o seu envio. É claro que o postal ilustrado é isso mesmo, uma imagem virtual representando apenas o que gostaríamos que lá estivesse ou gostaríamos de ver, por vezes quase uma miragem, como os perfumes, as cores e os sons que, de súbito, nos chegam do passado.
Mas não interessa. Gosto de cartas e de postais, mesmo que já não me transmitam as mensagens e os sonhos de outrora. É verdade que os actuais meios de comunicação e as famigeradas “redes sociais” quase obrigam a abandonar os velhos processos, não por serem obsoletos mas apenas por abandono, como as instituições que desaparecem lentamente até à extinção por falta de pagamento de quotas dos sócios, um mal muito generalizado e que devemos considerar como reflexo do enfraquecimento do espírito colectivo, devorado pelo absurdo individualismo hedonístico do século XXI.
Terminarei com uma breve nota sobre modernidade e antiguidade. Aconteceu-me recentemente enviar uma carta para Mérida, a antiga capital lusitana. A carta, na verdade um postal com sobrescrito, seguiu em Correio Expresso e todavia levou três semanas a vencer os 300 quilómetros que separam Lisboa e Mérida, distância que há dois mil anos o correio oficial romano, o Cursus Publicus estabelecido por Augusto, levava quatro dias a percorrer. Que comentário a fazer? É uma realidade dos tempos contemporâneos, que parece justificar o recurso aos meios técnicos, Internet e outros, instantâneos.
Mas onde fica a “presença”, nesta solução? Quem se lembrará, daqui a dez ou vinte anos do convite enviado com uma lista de dezenas de nomes? Ou mesmo o email com um conteúdo mais particular que marcou um momento importante? Não sucedia assim com as cartas e os postais ilustrados. Umas e outros ficam, se quisermos, e levam-nos onde queremos e, por vezes, onde não queremos, relendo o seu conteúdo e recordando imagens. Talvez por isso mesmo a nossa sociedade de coisas efémeras as tenha abandonado, pois tem medo do passado como de tantas outras coisas, umas com razão – por vezes ignoradas – e outras sem nenhuma. Voltarei a falar de cartas, um dia. Hoje, afinal, fui bafejado pela sorte. Recebi um belo postal de Annapolis (MD) e com ele ganhei o dia.