“POVO QUE LAVAS NO RIO”

UMA ODISSEIA DE MULHERES, AS LAVADEIRAS

0
1236

Lembro as mulheres da minha aldeia, minha mãe nesse corpo de heroínas, quando em seus tempos livres, cesto à cabeça carregando a roupa da família, roupa que o suor encardira, roupa de quotidiano dela própria, do seu homem e dos filhos, roupa de trazer no dia-a-dia, lençóis de estopa ou de linho, roupa que reservara intimidades, toalha de mesa da cozinha familiar que às vezes cobria a cesta da merenda e depois se estendia sobre a relva na meia-manhã de trabalho, lembro-me de as ver passar, airosas de porte, dignas de sua mãe, essa Eva primeira quando, abandonado o Jardim que habitara, secara ao sol as peles de cordeiro que Javé lhes dera por agasalho, a ela e a Adão, antes que tivesse inventado as fibras do linho.

Odisseia destas mulheres era o transcurso de um caminho de rio ou ribeira, mais tarde do tanque de lavar construído na margem da aldeia, caminho que faziam a cantar quando, tantas vezes, mais se lhes oferecia o chorar, caminho de histórias contadas com as companheiras, como as de Ulisses, que um poeta cantou. Depois, quase sempre joelhos em terra, mal agasalhados nas tábuas de uma joelheira, bate-que-bate, no lavadoiro, entre as mãos de sabão e os risos delas e das companheiras e o cantar dos demorados romances antigos, a faina seguia até que a roupa ganhasse o jeito de vela aberta ao sol e ao vento, suspensa do cordame estendido entre dois mastros na margem do tanque ou da ribeira onde se estendia a corar antes de voltar água e à corda estendida para o sol a secar.

Ano a ano, no pino do Verão, havia a barrela. Tinha lugar marcado no canto de alargado pátio de uma casa de lavoura. Um cesto vindimo bastava, ou uma larga caixa de madeira que viera de um tempo de avós. E a roupa grave, lavada, camisas de linho de vestir ao Domingo, toalhas de mesa de trabalho ou festa, lençóis, em camada, ali ficava dentro, jeito de adormecida. Sobre ela estendia-se o barreleiro, jeito de manto para o efeito guardado. Uma rasa de cinza de lenha comum ardida na fogueira, ou de molhos de vides secas em moreias num canto da vinha colocava-se a cobrir. E de um pote de água a ferver num canto de lareira que perto se inventava despejava-se a água, sobre a cinza, até vê-la, demorada, a sair pela base do cesto ou do caixote. Ali dormia depois, a roupa humedecida até à madrugada quando a dona vinha para a levar ao ribeiro e a estender ao sol antes de na arca a guardar.

“Povo que lavas no rio”!… Como é fácil lembrar o magnífico poema de Pedro Homem de Melo que a sentida voz de Amália transfigura ao deixar-nos suspensos do drama que a sua voz canta!… Como é fácil lembrar o ecoar da voz de Gracinda (Beatriz Costa) nas alegres cenas do filme “Aldeia da Roupa branca”, de Chianca de Garcia, desenroladas em terra saloia e essa heroica viagem das carroças carregadas com a roupa lavada que haverá de vestir os senhores da cidade!… Como é fácil lembrar as cenas campestres dos romances de Júlio Dinis ou as poderosas imagens carregadas de cor que José Malhoa nos deixou, de lavadeiras!…

Povo que lavas no rio!… Memória. A poesia, neste caso, em boa hora trocada pela mecânica máquina de lavar!…

vídeo

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui