Dois

Estamos à beira-rio. O dia amanheceu cinzento-claro, não está calor. As ruas estão calmas, tal como nós. Olho para a outra margem, a cidade é tão bonita. Conversamos devagarinho, deve ser a primeira vez que conversamos devagarinho. Sinto-me em paz, na mão seguro religiosamente os dois martelinhos.

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O teu cabelo é dourado, cai-te numa pele bronzeada que enquadra o sorriso franco. Pareces bem com a vida e fazes-me sentir bem comigo. Sentamo-nos na esplanada, rimos com as patetices anteriores. Preciso de ir à casa de banho. Dizes que esperas, tranquilamente. Entro no restaurante. É feito de madeira, tem mesas e bancos corridos, toalhas de papel, mesa posta. Ao fundo, uma enorme cristaleira com tampo de mármore. O que há para almoçar, pergunto. Bacalhau e Bifes de Boi. É isso mesmo. Reservo a mesa do fundo e saio para te comunicar que vamos almoçar ali. Levantas-te, achas bem. Almoçamos entre brindes e beijos e o meu refilar com o senhor do lado que me respondeu mal e acabou por mudar de mesa por causa dos beijos. Levanto-me para ir de novo à casa de banho enquanto pagas. Chego à rua, o sol eléctrico fere-me os olhos, não te vejo em lado nenhum. Nem acredito que desapareceste. A senhora do carrapito e óculos que nos serviu chama-me: o seu amigo foi à casa de banho. Sorrio, agradeço. Sento-me cá dentro à tua espera. Sais disparado, a senhora do carrapito e óculos sai atrás de ti para te dizer que estou cá dentro. Olhe, então não leva os martelinhos? Volto mais uma vez atrás. Ao pegar neles, derrubo um bibelot de loiça, acho que era um sapo verde. Mas olhe, eu pago. Deixe estar, deixe estar, diz a outra senhora encolhendo os ombros.

Pedes-me a mão, perguntas: queres fazer amor comigo? Olho-te nos olhos, beijo-te os lábios grossos.

Pegamos um táxi, dizes que conheces um sítio bonito ao pé da mítica discoteca. O taxista é velhote, simpático. Quando chegamos diz-nos: ainda vão dançar, não é? Rimos, eu respondo: não, isso é para os mais novos, nós, é mais cama. Bom dia, bom trabalho!

Olhamos para a porta. Olhamos um para o outro. Entramos de novo na festa, na noite do santo padroeiro. O barman faz-me uma pequena festa, a ti já te conhecem. Estás em casa, eu continuo na minha festa de anos. É quando me puxas para dançar e tiras a sweatshirt que vejo bem o teu tronco. É meticulosamente delineado. Já foste bailarino, és perfeito. Deixo-te na pista e fico a ver-te dançar para mim. Danças bem, mais do que nunca desejo-te. Quando voltas ao bar encosto-me a ti, beijo-te e procuro com a mão o teu sexo. Rimos e decidimos ir embora, mas pedes mais uma cerveja, eu amuo e bebo mais um shot com o barman, tu amuas.

Subimos, enquanto vais à recepção fico à conversa com o porteiro. E estamos em festa, outra vez. O rapaz da recepção não se livra dos meus martelinhos, nem os hóspedes que vão a sair. Depois de, pela enésima vez naquela noite dizer que faço anos, desejam-me os parabéns e um dia feliz. Subimos ao quarto. Gosto do quarto. Fechamos as cortinas. Deitamo-nos atravessados na cama. Olho para ti, levanto-me e tiro a camisa. Os teus olhos brilham e rapidamente me imitas.

Acordo envolta em ti, o meu corpo nu não tem pudor do teu. Olho para os teus cabelos, escondem-te o rosto, estás virado de costa. Fazes-me festas, quase que adormeço no toque dos teus dedos. Voltas a beijar-me, a abraçar-me e fazemos amor. O telefone toca, mas desligo, não quero falar com ninguém, não quero saber de mais nada para além do que se passa neste quarto.

Acordo com o telefone. Onde estás? Sabes que horas são? Ia agora a tua casa, a tua mãe comprou um bolo. Opa, já não voltas hoje? Pelo menos avisa a tua mãe. Desligo com o peso que ela fez questão em largar. Anoiteceu outra vez. Tomo um duche bem forte, ligo à minha mãe. Já não vou hoje, estou em casa de um amigo. Até amanhã. Deito-me na cama. Vês as horas. Perguntas se está tudo bem. Dizes que amanhã de manhã me levas à estação. Digo-te que preciso dum chá. Telefonas para a recepção, pedes o serviço de despertar e um chá, mas o bar está fechado. Suspiro. Com um sorriso perguntas se te vou obrigar a ir à rua buscar um chá. Solto uma gargalhada, abano a cabeça e a má disposição física passa. Conto-te que a minha mãe disse que estava tudo ok e que a minha amiga parecia a minha mãe. Rimos. Recordamos mais pormenores da tarde, da chegada ali, da noite, do sexo. Contas-me histórias enquanto me tocas. Falas da tua vida. Não acredito na tua idade, pareces tão mais novo. Perguntas se esta é uma daquelas situações em que acordei, olhei para o lado e não me lembro nem gosto do homem que vejo nu na cama. Beijo-te outra vez. Dizes para encostar a cabeça em cima do teu peito. Estou quase para te dizer que esta é a minha posição preferida mas, no último instante, resolvo não o fazer. Viro-me de costas e abraças-te a mim. Viras-te de costas, mas tocas-me na perna. Passamos uma noite assim, a abraçarmo-nos, a tocarmo-nos, a rir, a conversar, a fazer amor.

Às seis da manhã, quando estou quase, quase a adormecer, dizes ternamente que temos de ir, que irei perder o comboio. Peço-te cinco minutos. Quando te levantas e vestes as calças com ar resignado dizes que temos de voltar à realidade.

A avenida está deserta. Procuramos um táxi, sem grande sorte, mas também sem grande preocupação. Pões-me a mão no ombro, na mão levo um dos martelinhos, deixei o outro. Caminhamos serenamente pelo cinza da manhã quieta. Lá aparece um táxi que mais parece uma discoteca ambulante de música da santa terrinha. Ia eu tão romântica e apanho com o folclore da realidade. Não consigo olhar para ti, senão desmancho-me a rir.

Pedes-me o número de telefone. Dou-te quando chegar ao carro, está bem? Olho para o lado, sinto um vazio. Como que a pressenti-lo, pões-me a mão na perna. Gosto de ti, repetia tudo outra vez.

Deixas-me na estação, pedes desculpa por não me levares ao apeadeiro. Durmo mal no comboio. Acordo e adormeço a pensar que estou nos teus braços que não estou. Chego a casa, descalço-me. Aqueço qualquer coisa para comer. O telefone toca, és tu a perguntar se cheguei bem. Adormeço desta noite de São João.

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