Tenho de ir conhecer o Sr. Carlos. Tanta vez já mandou pôr no para-brisas do meu carro o seu anúncio «COMPRO todo o tipo de carros, carrinhas, motos, com ou sem inspecção ou avarias, mesmo para abate» que, qualquer dia, sinto mesmo obrigação de o ir visitar.
Certo é que ele afiança que se desloca ao local e, aliás, cobre todas as ofertas. Mas eu acho que devo fazer mesmo questão de o ir ver, porque quero sentir, confesso a minha curiosidade, quiçá doentia, quero sentir o seu ambiente de trabalho.
Imagino que tem mui espaçosas instalações, um corrupio de carros a entrar e a sair, uma chusma de mecânicos devidamente abalizados para de tudo tratarem de «todas as marcas», como vem no anúncio.
Poderia solicitar-lhe que viesse ao meu encontro. Mas adivinho que viria no seu traje domingueiro, gravata a condizer com o fato, sapato de último modelo, e eu sentir-me-ia mal vestido ao pé dele. Sempre prefiro ir eu à oficina. Sim, porque o seu local de trabalho deve ser mesmo uma oficina e, aí, nada de andar engravatado e fato de alfaiate cortado a rigor. É fato-macaco e pronto.
Confesso, todavia, que tenho andado hesitante.
Já quando foi do ‘boguinhas’ que nos havia saído no sorteio daquele supermercado aonde costumamos ir às compara, já quando foi na altura em que pensámos seriamente em nos desfazermos dele, por ter mais de 25 anos e não termos pachorra para o incluirmos no rol dos ‘clássicos’, hesitei em contactar o Sr. Carlos ou outro dos senhores que insistentemente nos convidavam ao negócio.
Acho que fiz mal em não tentar.
Sempre ficaria com uma ideia de como era e não passava pelo transe de entregar para abate o «boguinhas» de tantos quilómetros de solidariedade. O amigo Vítor aceitou-o com ternura, mas apertou-se-me o coração. Se o tivesse trocado ou vendido, ficava com a ideia de que ainda poderia servir a mais alguém. Assim, «abatido» é palavra que dói. E faz-me lembrar de imediato a resposta que me deram daquela repartição quando solicitei o contacto de um colega que acabara de se aposentar e eu tinha urgência em falar com ele:
– Já não temos o contacto. O Senhor Doutor foi… abatido!
O senhor
Quando, todavia, pensei em escrever esta crónica não foi nada por causa de automóveis: foi por causa do «Sr.».
Achei piada à forma como o «Sr. Carlos» se identifica com Sr. e tudo. E logo me veio à lembrança a enorme vergonha por que passei quando assinei a primeira circular como Presidente do Conselho Pedagógico da minha Faculdade.
Era tradição que o mais novo doutorado fosse eleito para esse cargo. Doutorei-me e tornei-me presidente. Acabara de me doutorar, estava impante do «doutor» por extenso e, por isso, assinei a circular: o Presidente do Conselho Pedagógico / Professor Doutor José d’Encarnação.
Qual não foi, todavia, o meu espanto, quando, dois dias depois, recebi um sobrescrito com a minha circular dentro, tendo junto ao «Professor Doutor» um enorme ponto de interrogação anónimo! Eu obtivera a máxima classificação, as provas aparentemente tinham corrido bem… o que é que aquela interrogação significava?
Percebi de imediato: os títulos estavam a mais! Ficou-me de emenda. E ainda hoje agradeço a bofetada que esse anónimo colega me deu. E vem-me agora esta do Sr. Carlos!
Como, há anos, me apareceu um aluno de Mestrado que escolhera para endereço do correio electrónico a abreviatura Dr. antes do nome. No final da aula, chamei-o à parte e contei-lhe a minha história do Pedagógico, sugerindo-lhe que retirasse o Dr., atendendo, inclusive, ao facto de ser estudante, ainda que de mestrado, e ter de corresponder-se com professores. Não retirou.
Decerto porque quis alinhar com a tradição coimbrã de todos os estudantes serem ‘doutores’ para os futricas, como, no Brasil, qualquer homem um pouco mais bem vestido «doutor» é e tem que ser!
Tenho chorado com muitas crónicas por aqui, que espelham uma crua realidade que parece já não comover muita gente, de tão generalizada, mas ri imenso com esta.
Primeiro, faz muito bem o Sr. Carlos em colocar a sua distinção. Um antigo Prof. meu que já partiu, dizia-me, olá Drª. ..não…Mestre. Lembrei-me logo da loja do mestre André e pedi-lhe:
– Por favor, Sr. Prof. pare lá com isso, até me sinto mal
– Não senhor, cada um é o que é
– Pronto, está bem, Sr. Prof. Doutor….
Aquilo não soava nada bem quando o cumprimentava, mas ele gostava assim!
Agora…tenho vintenas de papéis no meu automóvel miserável todas as semanas e apesar de saberes que esta amiga precisa de um carro, foste entregar o boguinhas ao mais “amigo Vítor”. Que altruísmo! Eu pagaria, se ele andasse.
A segunda ferroada: o Dr. do aluno era uma senha difícil…Quem ia imaginar que ele a escolheria? Estragaste o engenho ao rapaz que teve de arranjar outra, calculo. E só não mando um diálogo entre o Windows e um usuário inexperiente em criar senhas difíceis, porque não conheço a autoria do texto e aquilo termina mal…
Muito grata por esta crónica, Sr. Prof. Doutor José d´Encarnação. Estou a fazer um intervalo e ainda pareço gaseada com o facto de eliminar metade de um trabalho. Mas o riso deve ser consequência do meu estado deplorável
Um grande abraço.