Todos ouvimos frases de elogio que podemos enquadrar neste conceito, mas eu não me lembro senão daquela fracção de tempo gravada como memorando.
Esqueci o resto das palavras arquivadas, das tiradas obscenas aos delicados madrigais, e volto sempre ao piropo que me dizem que não é.
Tinha acabado de chegar a Lisboa, ainda embalada pelo bucolismo dos choupais e pelo recato sonhador dos quase 18 anos. Para mim o homem ideal devia ser alto, de cabelos negros e olhos verdes. Os louros de olhos azuis chegariam pouco depois.
Aquele que descia uma perpendicular à Rua Luís Fernandes, a mesma que eu subia depois da aula no Instituto Britânico, não era nada do que eu concebera. Era alourado de cabelo curto e meio encaracolado, elegante no seu fato completo cor de mel, camisa muito branca e pasta castanha na mão direita a condizer com os sapatos. Ah, e tinha óculos de aro fino metálico que lhe davam um ar distinto na aparente ingenuidade.
Não estava enquadrado nos parâmetros de eleição do presente, não preenchia os requisitos que haviam de me fascinar meses depois.
Bem sei…não querendo dar nas vistas, ia reparando sorrateiramente nos detalhes enquanto um grãozinho de areia caía na barriga da ampulheta. Em minha defesa devo dizer que tinha uma razão de peso: antes de chegar a meio da ladeira, o indivíduo de cerca de trinta anos, um bocadinho velho para mim nesse tempo, não tirava os olhos de um ponto qualquer abaixo da minha cintura…
Teria eu a bainha do vestido descosida, alguma linha pendurada? Àquela distância só uma linha de comboio se poderia avistar. Mas ele olhava para lá com uma fixação tão consternada, que eu começava a corar de olhos pregados no chão, ou mais ou menos… Admito que de vez em quando mirava pelo canto do olho, para ver se ele notava o rubor.
Tinha esperança que desistisse de fixar o pormenor desconhecido no meu mapa corporal, mas ele parava a cerca de metro e meio, à espera que eu passasse, sempre a olhar para o mesmo ponto…qual? E quando eu já me cruzava com ele, ouvia-lhe a voz encorpada num lamento magoado que me deixava quase em lágrimas:
“Oh…que pena, já agora podia ter também uns joelhos bonitos…”
Foi o piropo mais lindo que alguma vez me disseram ao longo da vida toda. Que não, insistiam as pessoas a quem eu tinha a coragem de contar. Que grande indelicadeza…
Mas qual quê! O meu coração e cabeça ficavam rendidos à genuína tristeza daquele a quem hoje chamo jovem. E ia direitinha ao espelho grande mal chegava a casa, para confirmar: estava coberto de razão, só me restava usar calças.
Enquanto subia a rua não lhe ouvia os passos na laje escorregadia, devia continuar lá parado a seguir os contornos do corpo e a lamentar em silêncio o desajuste do pormenor, mas a minha cabeça ia sendo dominada por um pensamento: ali estava uma pessoa que me poderia levar!
Sem ter cabelos negros e olhos verdes, nem louros e olhos azuis, era um indivíduo assim, tão profundamente rendido aos meus desencantos, que me encheria os dias de felicidade. Talvez de mais, mas isso remediava-se. E bem podia colocar-me a jeito de uma primeira conversa, em vez de escolher a rua paralela logo no dia seginte à mesma hora. De calças compridas e menor encanto, não queria ouvir nada que estragasse a bela recordação.
Passei a gostar de homens mais velhos. E até apareceu um alto de cabelos negros e olhos verdes a perseguir-me todos os dias no autocarro, o corpo colado ao meu, a empurrar a minha coxa com a dele até ficar lugar para mais uma pessoa no banco. Mas eu permanecia lá atrás, no meu perfeito termo de comparação, a tecer o pensamento crítico e adulto.
Nesta bolha onde me fecho e permaneço a olhar o mundo, a hipocrisia de um mundo que não se consertará sem uns abanões, reforço a ideia de que não vale a pena esboçar perfis e situações ideais. A vida é o que é. Tem mais força do que a nossa determinação.
Um texto que encanta e de certa maneira desmonta a questao ” do piropo”
Como sempre a Helena é exímia na sua narrativa, prende a atenção da primeira à última palavra.
Venham mais textos assim.
Que texto e … que piropo. Poderia chamar-se-lhe desconcertante, mas não, a Helena não o entendeu assim: privilegiou a sinceridade, a opinião – a que ela chama – honesta.
Delicioso. Até pela descrição do tipo de homem que considerava e considerou depois mais atraente. Quanto à preferência por homens mais velhos, que antologia se poderia escrever.
Uma crónica à medida da autora. Está ciente dos problemas que nos afligem mas prefere deixar uma memória com algum humor.
Vai dizendo umas verdades porque há uma fase da vida em que se idealiza demais e só depois a realidade ensina.
Agradecemos. Lê-la é um prazer.