Agora, finalmente, vou poder ganhar qualidade de vida, porque essas 8 horas não letivas me vão permitir: mais tempo para preparar aulas; corrigir testes (aliás, “instrumentos de recolhas de informação para efeitos classificatórios”, (sim, agora é muito “chique”. Isso de “testes” era uma coisa muito brega e do passado); elaborar esses mesmos “instrumentos de recolhas de informação para efeitos classificatórios”; classificar composições; frequentar ações de formação sem correr o risco de acumular serviço; fazer o trabalho de Direção de Turma de forma tranquila; preencher as picuinhas informações intercalares; conseguir dar resposta ao que pedem hoje para estar pronto anteontem… sei lá! Enaaaa! Estou tãããão feliz! Agora, em vez de viver para trabalhar como fiz até aqui, vou, finalmente, poder trabalhar para viver!!!
Ah! Espera!… Esqueci-me de um pormenor que se calhar é importante… O meu grupo de docência é o 200. Dou Português. Sou daqueles ‘coitados’ a quem castigam e obrigam a usar essas supostas “horas de redução da componente não letiva” para dar… aulas de apoio. Com alunos. Sim, porque parece que estar com alunos em aulas de apoio não é trabalho letivo. Afinal, o meu amigo art.º 79.º do ECD revela-se um “Amigo da Onça”. (Não disse “Amigo de Peniche”, pois calculo que muitos colegas de Peniche estejam na mesma situação e não quero ofender ninguém).
Portanto, deixa-me pensar:
Deixo de estar com uma turma onde dou uma aula curricular, para estar com 8 alunos escolhidos a dedo pelas suas dificuldades (pelo menos na minha escola é assim). A “Fina-Flor”. “A Espuma das Canções” como diria Rui Veloso. Aí, em vez de preparar uma aula para todos os alunos, preparo 8 aulas individualizadas em que tenho de me dividir (qual Deus omnipotente e omnipresente que consegue atender a todos) e descortinar os mais diversos elementos de trabalho destinados aos mais diversos alunos que se debatem com as mais diversas dificuldades de aprendizagem. Um tem dificuldades de leitura; outro de compreensão; outro de interpretação; outro de gramática; outro é disléxico; outro, simplesmente, não quer “fazer nenhum”; outro não é capaz de escrever um texto, por mais simples que seja; outro “caiu neste país de para-quedas” e está completamente fora de contexto; outro não fala português (sim, porque uma ou duas horas de Português Língua Não Materna por semana não permitem a compreensão das 13 disciplinas que estes alunos têm de frequentar ao longo do ano. Estar 100 minutos numa aula a ouvir um professor sem compreender ‘patavina’ da língua… é obra. Quem vem, por exemplo, do Nepal, da Ucrânia ou da China… desenrasque-se! E ainda por cima, nem os brasileiros percebem português!
E diz a Lei que esses apoios marcados em horas de redução da componente letiva são individualizados…
Mas porque será que sobre este assunto não se fala nas contestações sindicais? Ah!… Talvez porque os sindicalistas não deem aulas e não passem por este problema… Assim também eu!… É muito mais conveniente implorar pela passagem de escalão. Pois a mim, apesar de ‘preso’ no 6.º escalão, com 34 anos de serviço e sem vislumbrar o topo da carreira, preferia, antes, livrar-me deste ‘estorvo’ que são as aulas de apoio….
OK. Fiz 60 anos e começo agora a ter medo do Bicho Papão. Parece que cheguei mesmo à segunda infância…
Doem-me as articulações, odeio aquele relógio que insiste em despertar às 7 e um quarto; detesto as quantidades de remédios que ingiro que, pelos vistos, são essenciais à minha existência e, sobretudo, detesto acordar daquele sonho em que estou com a minha mulher em férias, na praia, num mar de 30 e tal graus para, de repente, ao som do malfadado despertador, saltar da cama, ir dar aulas e repetir a história que relato há 30 e tal anos… Um dia destes estou a ponderar ir dar aulas vestido de telemóvel… Talvez assim…
… Decididamente. Este país de gente velha não é (mesmo!) para velhos.