O amor que era sexta feira

Chamavam à sexta feira o dia do amor merecido. Tempo que reivindicavam para os dois, sem mentiras e sem medos. Abraçavam-se debaixo do pinheiro onde uns anos antes, felizes como dois adolescentes, tinham gravado as iniciais dos seus nomes, dentro de um coração, atravessado pela flecha de Cupido.

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Era uma relação clandestina, permanentemente ameaçada de ser descoberta, com consequências imprevisíveis. Um risco de que tinham consciência e mesmo assim corriam, porque não há como proibir para que uma relação se fortaleça. À sexta feira, a ausência da “legítima” tornava possível um longo encontro. Num local familiar, longe dos olhares acusadores, sem risco de denúncia. Por isso lhe chamavam o amor que era sexta feira.

O riso ocasional, por certo de uma piada tola, talvez carnal, como ele costumava chamar às piadas dela, era, em certa hora, interrompido pelo silvo de um comboio, que suspendia a cena tão familiar das sextas-feiras. Ele pousava a colher, levantava o indicador e perguntava:

– Ouves? Ouves este som? Eu adoro este som.

E ela, encantada:

– O comboio? Eu também adoro. Traz-me muitas memórias!

Depois, o silvo do comboio tornava-se distante, ele voltava a saborear a comida e a cena continuava. Dentro dos dois circulavam comboios, ou talvez tivessem parado nalguma estação. Desciam da carruagem e voltavam à sombra do Pinheiro dos Abraços.

Eram quase nove horas da noite. Há várias horas que não ouvia a sua voz. Ia até à estação de serviço tomar um café, a escassos metros da linha do comboio. Voltava a ouvir o silvo. E voltava a magia da sexta feira! Entre a saudade, a ansiedade e a verdade das horas à espera de o ver, de o ouvir, de o ler, aquele comboio acordava nela estranhas memórias. De um passado vivido. De um futuro inventado no passado. (Como cantava Pedro Barroso: um homem fica parvo com força do futuro contida no passado).

O sinal sonoro de sms chegava com o som do silvo do comboio. Imaginava-se então num tempo sem tempo, viajando pelo espaço etéreo, desaparecendo num raio de luz.

Tentava muitas vezes dizer-lhe isto, em palavras a juntar à tarde de sexta-feira, passados vividos e futuros imaginados, num interminável texto que era urgente escrever.  E escreveu. Três centenas de páginas, impressas, que vão amarelecendo numa gaveta, as palavras perdendo a cor e o sentido.

Vagueava pela noite, bebia gingerales no bar de sempre, ouvia histórias das mesmas pessoas de sempre, voltava a casa.  Revisitava a vida que passara em comboios, em estações de chegar e de partir, em tempos e lugares próximos e distantes.

Assim se vivem amores proibidos, que na clandestinidade se fortalecem.  Mais poderosos que as relações amorosas ditas legítimas, sexual e emocionalmente mais intensas e compensadoras. Os/as amantes ficam sempre com o melhor. Só porque não vivem o cansaço das rotinas e os muitos problemas domésticos. Diz quem sabe, porque na vida foi a e também a outra. Valem bem cada sobressalto, cada susto, cada ameaça. Mas também estas histórias acabam e já nem lembramos como nem porquê.

A vida continua, ainda há flashes de memórias, que de tão vagas se vão tornando esquecimento.  Já nem ouve o silvo do comboio, que em tempos anunciava a cena familiar do amor que era sexta feira.

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