Levou-a a 1ª taxista de Lisboa!

«E digo-lhe mais: está a ser conduzida pela primeira taxista de Lisboa. Chamo-me Carminda. Sou aí muito conhecida, já me entrevistaram várias vezes… logo a seguir ao 25 de Abril… fui a primeira mulher a ser sócia da Autocoop e do Sindicato dos Taxistas de Lisboa…»

0
1759

«Ele há coisas que acontecem!…», assim intitula Ana T. Freitas a crónica que recorda, no seu livro Uma Possibilidade chamada menina (Modocromia, Lisboa, junho de 2022, p. 31-33), o encontro com Carminda, que até serviu almoços a Salazar, por ele ser convidado amiúde dos senhores ricos em cuja casa servia. Carminda que, encantada com o rolar dos carros pela ruas de Lisboa, sonhava em conduzir um deles. Analfabeta, decidiu-se a aprender a ler e a escrever, tirou a carta e… o resto já se adivinha.

fotogramas de reportagem da RTP em 1978 sobre Carminda Gonçalves, a 1º táxista de Lisboa

E, nesta sua primeira incursão pela prosa, ela que é visceralmente poetisa, a dar cartas em Coruche, onde vive, com a sua periódica iniciativa «Um poema na vila», Ana Freitas leva-nos por aí, nas suas andanças, agora professora aposentada.

«Possibilidade» foi boneca, prenda de Natal. Nome assim escolhido por ser único. Aliás, «uma palavra grande! Talvez maior que felicidade… mais longa, tem a lonjura do caminho […] tem construção» (p. 23). «Menina» (parece-nos) é, ao invés, a Autora, porque estas páginas retratam, contam da sua vida, das suas ideias, de histórias, como a da D. Carminda, por que foi passando.

Ecos há de menina de escola, de mãe, de professora. De activista pela Cultura. Ecos do antes e do depois de Abril. Das origens modestas, sofridas. Daquele encontro com o homem em dia de chuva, bicicleta à mão carregada de sacos, que subia e descia o passeio para poder seguir caminho: «E assim a chover é que é pior!», comentou-lhe Ana. E, de «sorriso rasgado», o senhor, sem guarda-chuva, respondeu: «Não faz mal, a água faz falta, é boa para todos, e, se é bom para todos, é bom que chova» (p. 42).

Não sei invocar teses explicativas de uma prosa assim, como Lucília Meleiro faz no prefácio. Nem ouso também filiá-la – como peroraria crítico encartado – em corrente literária na moda ou em desuso. Sei, ao invés, que Uma Possibilidade chamada menina se lê com muito agrado e sem detença. A deliciosa aventura de ser mãe; a alegria de se aperceber que o filhote de 4 anos já sabia ler; a dissertação sobre a importância do nome, a propósito do apelido que misteriosamente lhe havia sido negado à nascença; aquele célebre jogo de futebol Portugal / Irão, à mesa de café com um invisual que ouvia o relato pelo telemóvel em alta voz; o significativo e bem oportuno dicionário feito pessoa que fala… E o grito final a vituperar o 24 de Fevereiro de 2022!

Frases curtas, singelas, aqui e além ornamentadas («Estranha pensei estranhadamente que teria decorado a estória linha a linha, mas estranhei!» – p. 64). A evocação apropriada de frases colhidas em leituras suas. E sempre, obsessiva, aquela cabeleira menina, enorme, que forte aragem mantém horizontal para trás, a mostrar Possibilidade em indefectível decisão de prosseguir além!…

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui