Chegam a casa dele depois de uma praia ao pôr do sol. Ela quer cozinhar, dar-lhe um mimo para fechar o fim de semana perfeito.
Procura por entre as gavetas do congelador e tira uma embalagem de almôndegas. Vai à varanda, aprecia a brisa de uma noite quase de verão. Dobra as costas, sinal de cansaço. Ele senta-se a seu lado, finge que não percebe. “Porque não me deixas fazer o jantar, tomas um duche e vens para aqui fazer-me companhia?”
Ela hesita mas acaba por anuir, volta com o cabelo molhado e um vestido quase transparente, liga a coluna Bluethooth. A música ecoa pela varanda, um dub simpático preenche a cozinha. Acende um cigarro, filtro branco, a lembrar as divas dos filmes noir. Ele decanta um tinto alentejano.
Ao vê-lo tirar a casca dos alhos aos bocadinhos com as mãos, engole subtilmente uma gargalhada com um gole do vinho sem tempo ainda para respirar. Ele passa a cortar cebolas com uma faca grande, num estilo profissional, em fatias finas. Tac, tac, tac! Está muito convencido das suas qualidades culinárias.
“Não há batatas para o puré”, vai à despensa. “Vou antes fazer arroz de manteiga”. Com um sorriso meigo, ela agradece o poder de decisão, ele verte água para a panela e um fio de azeite para o tacho. Acende o lume.
Agora um jazz ligeiro flutua enquanto ele faz o refogado e acrescenta tomates maduros cortados aos cubos. Ela percorre o corpo dele com o olhar. É magro, muito magro, perfeito para ela. “Se fosse lamechas diria que te amo, cozinheiro”.
“Eu sou lamechas, amo-te, hei-de sempre amar-te”. Depois ergue a mão fechada: “açúcar, canela, e umas gotas de limão: a perfeita trindade”. Com um sorriso irónico ela estende as pernas em cima da cadeira desnudando os joelhos. Ele consegue desviar o olhar, acrescentar sal às almôndegas, uma folha de louro, pimenta, cominhos, outros temperos e vinho branco a olho. Tira o arroz do lume, coloca uma noz de manteiga, dá-lhe a provar, pergunta se é suficiente. “Mais, arroz de manteiga tem de saber a manteiga”.
Fumam um cigarro enquanto as almôndegas cozinham em lume brando. Não resistem a gestos sensuais, beijos molhados, mãos pelos corpos que aquecem até o molho das almôndegas ferver. Sinal para desligar todo aquele fogo, sentam-se à mesa. “Está delicioso, perfeito tal como tu”, diz logo à primeira garfada. Ele sorri com os olhos, deixam o vinho a meio.
Alguém toca à campainha. É o amigo que divide o apartamento com ele, esquece-se sempre das chaves. Saem de imediato para casa dela. Deitam-se na cama, beijam-se devagar, despem-se um ao outro. Moldam-se, enrolam-se, fundem-se. Trocam a cama pelos puff’s do pátio. Deitados, de mãos dadas, olham as estrelas extasiados.
Continuo sentada, imóvel, ao som da musica romântica, até as letras do genérico desaparecerem. Sou a última a sair da sala. Está um tempo horrível, as gotas da chuva caem-me no rosto como se fossem lágrimas. O vento traz-me à fria realidade. Não tenho guarda-chuva, nem gabardine, chego a casa ensopada. A água do duche aquece-me, a água na panela ferve. Janto umas noodles chinesas de pacote. Apanho o cabelo e o casaco azul, abro o portátil e varro da memória aquele filme bonito, idiota, com final feliz.