O QUE NOS DIZ MAMADOU BA

"Alvo de inúmeras queixas vindas das extremas-direitas (a troglodita e a engravatada)", o ativista antirracismo Mamadou Ba vai ser julgado por ofensas à honra do neonazi Mário Machado.

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2003

Por causa da greve dos funcionários judiciais, o julgamento de Mamadou Ba foi adiado. O adiamento implica o prolongamento da campanha contra o ativista pelos Direitos Humanos, despoletada pela extrema-direita com o processo colocado pelo militante neonazi Mário Machado.

A decisão de levar a julgamento Mamadou Ba foi do mediático juiz Carlos Alexandre. Em causa está um texto de Mamadou Ba nas redes sociais a lembrar que Mário Machado terá participado no assassinato de Alcindo Monteiro na noite de 10 de junho de 1995. O juiz de instrução criminal considerou que Mário Machado já respondeu na justiça por esse caso, e que não será justo “uma pessoa carregar um anátema toda a vida imputando-se-lhe a participação, a qualquer título, num homicídio, cujo feito já foi introduzido em juízo e objeto de aturado julgamento e com acórdão do STJ, onde é absolvido desse concreto crime…”

O que ficou provado em tribunal foi que Alcindo Monteiro foi morto, linchado na via pública, por um grupo de skinheads (um bando de racistas) a que Mário Machado pertencia, quiçá liderava. Mas não se provou que tenha sido ele a matar, não constou no rol dos condenados por esse crime.

Ofendido na sua honra, Machado acionou os tribunais. E o justicialista Alexandre mandou Mamadou Ba para tribunal. Na instrução, a advogada Isabel Duarte, que patrocina Mamadou Ba, alegou que neste caso “não há honra suscetível de ser ofendida”, numa alusão ao longo cadastro de Machado, ao seu percurso político na extrema-direita e às ideias racistas que propaga.

A entrevista

Enviámos a Mamadou Ba, por escrito, as questões que considerámos pertinentes e às quais ele poderia responder sem risco de ferir a lei. E ele respondeu-nos assim:

Quando soube que ia ser julgado, o que lhe passou pela cabeça?

Fiquei estarrecido, mas sinceramente não surpreendido, quando soube que o MP decidira acompanhar a queixa particular de um criminoso neonazi que nunca demonstrou arrependimento das atrocidades que cometeu ao longo dos anos.

Fiquei ainda mais escandalizado quando, em sede de instrução por mim requerida, notei que o juiz Carlos Alexandre, numa curiosa e tão expeditiva decisão (em menos de 24H, contrariamente ao prazo de semanas que o próprio havia indicado) decidira confirmar as intenções do MP de me levar a julgamento.

Não fiquei surpreendido, porque não era a primeira vez que era alvo de tentativas de silenciamento politico através da manipulação da justiça por parte da extrema-direita. Mas, revolta-me que sujeitos como este, a quem tenho nojo de invocar o nome, possam gozar da mais ínfima das credibilidades para poder recorrer às instituições para sustentar a sua existência politica. Porque, não tenho dúvidas nenhumas que sujeitos como aquele que intentou esta ação, não só não têm honra nenhuma a defender, como reconhecer-lhes qualquer presunção honrosa é insultar a memoria das suas vítimas e aviltar a consciência democrática coletiva de qualquer sociedade que se preze.

Portanto, tudo isto é para dizer que espero tudo das estruturas sociais atuais, marcadas pelo racismo estrutural. Espero, inclusive, que haja um tribunal – ou vários – que decidam levar-me a julgamento por, segundo entendeu o Juiz de Instrução que apreciou este caso, uma frase minha ter prejudicado a boa reputação de Mário Machado, indivíduo que foi condenado ao longo de décadas, em penas efetivas por vários crimes de detenção de arma proibida, de dano simples e qualificado, de difamação agravada, de roubo simples e qualificado, de sequestro, de coação, de ameaça, de ofensa à integridade física qualificada e com dolo de perigo, de introdução em lugar vedado ao público, de extorsão, de tráfico de armas e de discriminação racial. Isto porque refiro, num texto em que identifico claramente o executor de Alcindo Monteiro, que ele é um dos principais responsáveis pela morte de Alcindo Monteiro, como, de facto, é, ainda que não tenha sido condenado por intervir diretamente nessa morte.

É possível que tenha de se cruzar com o Machado, em alguma das sessões do julgamento. Como antevê esse momento?

O sujeito em causa passa-me ao lado, mas pelo que representa, causa-me imensamente repulsa que possa conspurcar o espaço público pela sua presença. E, naturalmente, que encontrá-lo incomoda-me ética e moralmente, porque o seu lugar é nos calabouços e não na convivialidade de um espaço público democrático são e saudável.

Passei por ele há dias, aquando do adiamento da sessão. Repito que como pessoa, é-me indiferente. Como símbolo político, não. Por isso, esse indivíduo ter-me-á sempre como seu inimigo, seja num tribunal seja noutro sítio qualquer.

Tem havido manifestações de solidariedade consigo, de repúdio pela decisão do juiz de instrução. Esperava que fosse assim ou ficou surpreendido?

Não só esperava, como estou muito grato por elas existirem, porque comprovam que existe um cada vez maior alargamento da consciência coletiva de que o combate ao racismo não é uma aventura individual, nem pode ser nem é saudável que seja o folclore da fulanização das lutas. Estou bastante feliz por isso, porque sou daqueles que acredita que nunca ninguém mudou sozinho nada de substancial nas coisas mais estruturais nas sociedades, como o é o caso do racismo.

É por isso que considero que a decisão do juiz de instrução, é uma agressão à minha luta e à luta de todos que nela intervêm. A justiça não é a mera aplicação cega da lei, fornecida à medida em menos de vinte e quatro horas. Por a justiça ser muito mais do que isso, compreendo os movimentos de solidariedade que este processo gerou. Mas não sou eu que estou em causa. O que está em causa é um conceito de justiça e um conceito de sociedade.

Acha possível que o julgamento se transforme em algo mais? Quero dizer, num confronto de ideologias que ultrapasse a lógica da aplicação de justiça?

A partir do momento em que a extrema-direita faz da captura e infiltração das instituições uma estratégia politica, é claro que toda a sua atuação nos diferentes níveis de intervenção institucional releva da disputa ideológica. É por isso que este julgamento não é nada sobre defesa de honra (e diga-se, o reclamante não goza) nem sobre a minha pessoa. É o antirracismo que está sentado no banco dos réus.

Fui e sou alvo de inúmeras queixas vindas das extremas-direitas (a troglodita e a engravatada) e dos setores reacionários da direita, cujo proposito é a intimidação e a distração politica. Por que, porquanto existirem disputas judiciais, elas servirão de alavanca para legitimar a disputa politica e ideológica que pretende normalizar o fascismo e o racismo.

Olhando para o ambiente e o contexto políticos da nossa sociedade, não há qualquer possibilidade de este julgamento não ser um confronto ideológico, não só porque o indivíduo que me acusa não goza de reputação suscetível de ser ferida e, precisamente por isso, todo o estar dele foi, até agora, político, de forma clara, justificando-se os seus crimes por essa via, por assim dizer.

Pelo meu lado, sou adversário declarado e ativo desse estar político e foi esse o sentido da minha frase: esse indivíduo tudo fez, desde que foi conhecido, para levar à morte pessoas que não fossem cidadãos arianos, por assim dizer. Nunca baixarei os braços contra tal gente! Para mim, isso é que é a justiça.

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