OS LOBOS

Refiro os lobos humanos, é claro.

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baseado numa gravura de Matt Mahurin

Um ano de guerra e morte não bastou aos leaders mundiais para ficarem saciados de carnificina e destruição maciça.

Desde a infância que nos mandavam dormir cedo, sem barulho, para não vir o lobo mau. E de olhos fechados à força, sob a protecção dos lençóis, a nossa imaginação ia tecendo a figura de um animal tenebroso, capaz de rasgar a carne de vítimas inocentes pela calada da noite.

Estereótipos trazidos de tempos mais recuados. O século XIX incentivava a matança de lobos, invocando a sua ferocidade. Pagava prémios pela exterminação de alcateias. O século XX também. E em certas zonas rurais da Europa e dos EUA, quase estiveram, e estão, ameaçados de extinção.

Ainda hoje o “lobo mau” anda pelas redondezas, predador incorrigível a devorar os cordeiros que arrasta para o covil. Um lobo raramente vive só. E tem regras, liderança organizada. Depois há feras bem mais perigosas…

Os ladrões, os malfeitores, invasores de propriedade alheia, não têm culpa na redução de bens e de animais que os donos espoliados reclamam? Nem os mandantes da desflorestação desenfreada têm responsabilidade no desequilíbrio dos ecossistemas, na extinção das espécies que ao mundo vão sendo arrancadas? Impunemente vão colaborando com os lobos mais ferozes, para dividir recompensas.

Também devemos passar a mão pelo lombo de lobos responsáveis pela emissão de gases poluentes para a atmosfera, ou pela perfuração do ventre da terra por mísseis de longo alcance?

O lobo das histórias infantis, o subalterno desprotegido, os trabalhadores explorados, ou os habitantes escorraçados do seu meio, estão à mão de semear para arcar com a responsabilidade maior, ou com a morte, se resolverem protestar e ameaçar os líderes dos bandos.

O canis lupus, tão parecido com o cão! Fácil de domesticar, afeiçoado a quem lhe garanta o essencial para aguentar a curta existência. Inteligente, dizem os cientistas. Respeitador da hierarquia, para preservar a segurança da alcateia. Mata para sobreviver, poupando a existência das espécies que lhe garantam o futuro. Tive de ler sobre o assunto…A ignorância é sempre má conselheira.

E o que invocam os lobos humanos para deixar o cheiro pútrido nos campos de batalha, onde incentivam a morte por recompensa nenhuma? Que respeito, ou compaixão, têm pelas vidas humanas que apodrecem nas sendas da barbárie?

Pela calada da noite, primeiro, à luz do dia, depois, a cada minuto agora, as alcateias humanas semeiam ferocidade na Terra, no Ar, nos Mares, destruindo a vida, a biodiversidade, sem critério nem respeito pela sorte das gerações que aprendem a caminhar.

Espalham-se por todo o lado como nódoa de gordura, conspurcando os que, alheios, vão passando de mãos abertas e coração limpo. Até nas redes sociais se multiplicam, medíocres herdeiros da maldade sem escrúpulos, em sementeiras de confusão e descrédito.

Vomitam histórias maldosas com retalhos de maledicência, construindo tapeçarias onde acabam por enredar os incautos.

Falta de ocupação…vidas esvaziadas…infelicidade? Reclamam compreensão para si mesmos e não têm a centelha de inteligência, a dignidade que um canis lupus podia ensinar-lhes. Devíamos trabalhar em conjunto para arrefecer o planeta. Afinal incendiamos os ânimos sem tempo para o diálogo.

Seremos também uma espécie em extinção, a devorar-se sem dó.

6 COMENTÁRIOS

  1. “Torvado vem na vista, como aquele
    que não se vira nunca em tal extremo.
    Nem ele entende a nós, nem nós a ele,
    Selvagem mais que o bruto Polifemo.
    Começo-lhe a mostrar da rica pele
    De Colcos o gentil metal supremo
    A prata fina, a quente especiaria
    A nada disto o bruto se movia”

    Camões

    Vem isto a propósito de ter visto em criança o filme “O menino selvagem” realizado pelo grande cineasta francês, François Truffaut.
    Um filme a preto e branco, como não podia deixar de ser, até pela falta de grandes recursos tecnológicos, na época, onde se retrata a vida de uma criança encontrada num bosque, no sudoeste de França, na região de Aveyron, cuja capital é Rodez.
    Supostamente a criança, mais tarde chamado Victor, terá sido abandonado à nascença, ou ainda em tenra idade, e terá sobrevivido no meio dum bosque habitado por lobos e outras espécies, aprendendo a viver como os demais, no único mundo que o rodeava, o animal.
    Tal como este texto é de certa forma uma crítica à forma como o homem se auto destrói, o filme de Truffaut era uma abordagem notável ao instinto de sobrevivência do ser humano, e como este está no plano do instinto, não muito longe das outras espécies.

  2. A “dignidade” do canis lupus, que só mata para sobreviver, não se compara com a do homo sapiens sapiens, afinal… Este Sabe que mata por nada, por muito pouco, por mera sobrevivência da vaidade ou do ego… Um animal, mesmo que apenas senciente, preserva a vida, então, até mais não poder. Se isto não nos faz pensar, pouco ou nada o conseguirá…
    Obrigada Helena. Este artigo é uma autêntica pedrada no charco do nosso (in)consciente colectivo.

  3. Este comentário do Rui Naldinho fez-me recordar uma história contada pelo meu pai. Um conhecido dele, médico cirurgião, nascido e criado numa aldeia transmontana, numa região de pastoreio e de combate pelo território contra as alcateias de lobos. Saiu de lá adolescente, para estudar o liceu. Bom aluno, conseguiu entrar na faculdade de medicina e chegar a médico conceituado, cirurgião renomado. Esteve décadas sem voltar à aldeia. Até que, um dia, voltou. Convidou dois amigos citadinos (não sei se médicos também) e foram os três acampar para a serra. Era verão. Numa dessas noites, à volta de uma fogueira, o cirurgião sentiu um arrepio na espinha, os pelos a eriçar, era como se fosse um susto! Os outros dois, estavam mesmo assustados, a uns metros de distância, nas costas do cirurgião, um lobo espreitava a cena. Como foi que ele, sem ver o bicho, o sentiu? A resposta que o próprio terá dado foi a herança de gerações de pastores que transportava no ADN e que lhe deu o instinto de ficar alerta, mesmo antes de perceber a presença do animal selvagem. O instinto.

  4. Estou comovida com as três intervenções magníficas e empáticas. Também vi o filme de Truffaut. Como diz Rui Naldinho, não estamos assim tão distantes de outras espécies ao nível do instinto de sobrevivência, para só falar de um aspecto… A Margarida lembra que a senciência animal, quase supera a “inteligência” de certos humanos e assim creio, também. E a memória de Carlos Narciso, com a fantástica resposta que o cirurgião encontrou, vai no mesmo sentido de um instinto de defesa comum às espécies, ou de informações codificadas transmitidas pela herança genética. Muito grata por conseguirem enriquecer este humilde texto.

  5. O Mal pelo Mal é coisa tão antiga que até Santo Agostinho fez uso dele, como expressa nas confissões:
    – «Havia, na proximidade da nossa vinha, uma pereira carregada de pêras nada sedutoras nem pela aparência nem pelo sabor. Dirigimo-nos para ela, a hora intempestiva da noite, pois segundo um perverso costume tínhamos o hábito de prolongar o jogo nas eiras (até essas horas), para a sacudir e roubar. E roubámos uma grande quantidade de pêras não para o nosso banquete, ainda que tenhamos comido algumas, mas para as lançarmos aos porcos, sendo nosso deleite fazer aquilo que nos agradava pelo facto de que isso nos era ilícito.» (Confissões: II, 4).

    E esta pratica é tão inquietante que, tanto mal se pratica para mesquinhos prazeres pessoais: sejam eles roubos, impropérios, faltas de verdade (talvez o Decálogo todo do avesso), porquê ainda o mal pelo mal que nem os lobos o praticam, nem nenhuma especie das designadas inferiores.

  6. O texto é acutilante e cheio de actualidade. Os comentários, à altura.
    Pela minha parte, dou comigo muitas vezes a pensar porque será que, tantos milénios depois de descobrirem a escrita e começado a inventar instrumentos e utensílios de sobrevivência, e tendo atingido já um grau de avanço científico que lhes permite comunicar instantaneamente entre si em qualquer parte do mundo e viajar até outros planetas, os homens continuam praticamente no mesmo estado, de verdadeira barbárie, no que toca ao instinto de rapina e desmedida ambição, que os leva a frequentemente se atacarem e matarem uns aos outros, inclusive ao nível de estados, e fabricar meios bélicos capazes de causar a sua autodestruição. Nessa matéria, continuamos na Idade da Pedra. E relativamente à progressiva destruição do Planeta, estamos muito pior…
    Vivam os lobos!

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