Só me lembrava das tarefas por concluir: um texto pela metade, uma pesquisa adiada para
fazer avançar um romance, correio em atraso para os amigos merecedores da deferência,
e sempre os últimos, exactamente por serem amigos e compreenderem…
Talvez me ocorresse aproveitar melhor o tempo e, concentrando-me, um poema pudesse
nascer ali, como planta ousada nas ranhuras de uma fraga.
Nem por isso…O plim do aviso da posição de senhas, as vozes dos funcionários da longa
série de guichets em serviço, o visor do telemóvel a iluminar-se para acolher uma
mensagem…
Munida de esferográfica e bloco-notas, cabeça inclinada para trás e olhos semicerrados,
procurava desesperadamente circunscrever o meu objecto de análise, ou talvez mitigar
preocupações com o resultado dos exames. Perda de tempo!
Até que o barulho de fundo dos televisores, estrategicamente dispostos pelas duas salas
de espera, apelava a um maior envolvimento nas imagens pesadas. Crianças de colo
amarradas ao corpo dos pais, com uma mão na cabeça ajeitando as trouxas, outras
mais velhinhas, já cansadas, na retaguarda de filas intermináveis de desalojados que a
desumanidade vai aumentando, voltavam-se para trás, encarando o rosto dos operadores
de câmara que os seguiam.
Sem ponta de rancor. Sem acusarem o medo com que aprenderam a conviver. Um sorriso
fugaz… Seria uma réstia de esperança, mas em quê?
Nem eles saberiam. Os pais, avós, membros amigos da comunidade, transformados em
gerações itinerantes, todos os dias percorriam quilómetros de caminho sem meta à vista.
Não teriam como lhes dizer o QUE buscavam, QUEM os poderia ajudar, ONDE procurar
um abrigo para dormir, COMO sobreviver sem outros recursos que não os das reservas do
corpo e mente, ou QUANDO teria um fim à vista a dolorosa peregrinação e por POR QUE
eram obrigados a deixar casa e parcos haveres, na calma instabilidade da vida que
levavam.
Quase podiam ilustrar o paradigma de Lasswell para compor uma notícia, só que eles
acabariam por deixar de ser notícia, com tanta calamidade nova para reportar.
Nesse momento era chamada. A conversa com o médico não chegava a ser sobre a
minha saúde, os meus exames que felizmente estavam bem, era sobre a saúde mental do
mundo, os abusos de poder que desviam o objectivo da governação, enquanto serviço
público, para amiguismos, favorecimentos ilícitos, distribuição de fundos colectivos para
benefício privado.
Enfim, continuamos com monarquias hereditárias de expressão medieval.
Dependerá da escolha das lideranças, mas a corrupção é o cancro do poder, está a
destruir o mundo.
“E terá cura?” – perguntei ao médico.
“Tem…é só uma questão de governarem…é o trabalho para que foram “contratados”.
Então governem, senhores políticos do mundo inteiro. E respeitem a dignidade dos outros
seres humanos, que não têm culpa da vossa incapacidade.
Quem, onde, quando, como e porquê… As questões sem resposta que nós podemos colocar, quando pensamos nos muitos refugiados que as imagens dos média nos trazem até às nossas casas, nos sem abrigo que grassam pelas ruas, nos deslocados que vivem em condições sub-humanas em pardieiros transformados em dormitórios para lucros de alguns.
Questões que se podem também colocar em casos extremos como os sismos recentes que ceifaram milhares de vidas e desfizeram famílias para sempre.
E aí aparece o melhor e o pior da humanidade. Os que se entregam generosamente na ajuda aos necessitados e os que tiram proveito político das situações.
Muito mais teria para dizer, mas o comentário vai longo. Obrigada por levantar estás questões.
Os políticos andam para aí em manobras de diversão e jogos de poder, no plano internacional. Cá dentro vão distribuindo umas condecorações, debitam uns discursos inflamados, mas governar, não é para toda a gente. Muito obrigado.
Não é, infelizmente, uma visão pessimista, antes realista, a que ressuma desta pequena crónica, escrita por alguém que espera a sua vez num qualquer serviço de urgências hospitalar. Perante o que no dia-a-dia nos chega de notícias, seja do mundo onde a autocracia e a ditadura tolhem as liberdades mais comezinhas e onde mais de metade da população tem menos direitos do que a restante, seja dos países onde vigora a democracia, mas esta é cada vez mais minada pela corrupção e pela incompetência de quem governa, são cada vez mais negras as nuvens que se aproximam. Que mundo enfrentarão os nossos vindouros?
Parabéns pela excelente reflexão!