Luta sem tréguas

No ano 2022 perdi quatro amigas para o cancro. Incapacitada fisicamente por dois AVC no verão de 2019, conservei memórias, mantive -me lúcida, habituei- me à ideia de ser possível viver assim ainda muitos anos. Recuperei o gosto pela escrita, resgatei textos esboçados anos antes, reli, reescrevi. E tudo isto apenas com um dedo funcional.

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Vencido o terror da morte, não da minha, mas da dos outros, ver os mortos, estar próxima da morte tornou-se um atractor. Por isso fui visitar uma rapariga da minha aldeia, a rondar os 60 anos, que espera a morte nos cuidados paliativos do Hospital João Crisóstomo, em Cantanhede. Esperar a morte, para esta mulher, é um dizer irónico. Na verdade ela não a espera, ela enxota-a de cada vez que ela se insinua. Há meses que a morte ronda à sua volta. Mas ela recusa-a. Combate-a com uma força que só pode ser a força vital. A pulsão da vida em luta contra a pulsão da morte. Freud percebeu isto melhor do que ninguém, mas também ele era humano, por isso a luta titânica deste judeu pornógrafo foi vencida pela morte.

Aproximei-me da cama. Ela dormitava. Abriu os olhos, não me reconheceu de imediato. Depois pôs os óculos e abriu os braços. Abracei um corpo definhado duma bela mulher que ainda há meses encontrava todos os domingos no mercado da aldeia. Tive a percepção perturbadora de um corpo a morrer. No quarto pairava o cheiro adocicado da morte. Muito do seu corpo já morreu. É agora um corpo fragmentado, retalhado, esvaziado de alguns órgãos. Útero, ovários, vagina, uretra, intestino, tudo lhe foi retirado para impedir o alastramento das metástases, mas sem sucesso. Já se sabe que estas práticas invasivas apenas prolongam a agonia, a dor, a degradação do corpo… até à morte. Mas ela, ainda intrinsecamente parte do corpo que foi, o resto que continua a ser, é aquela mulher, viva, lutadora de sempre. Contorcendo-se de dor, apesar da morfina, declarou peremptoriamente: Eu sei que ela vai vencer. Mas não lhe darei tréguas. Estarei alerta e a combater até ao último minuto. Ela saberá que eu fui uma adversária à altura.

Esta declaração não comove. É uma declaração de guerra, não um pedido de tréguas, não uma deposição de armas. Por isso, ao invés de comover, suscita a raiva, a impotência e também a admiração. Ouço-a. Fala quase em surdina. Também a voz já começa a perder a batalha contra a morte. Mas não enuncia discursos de despedida. Fala da sua vida, do que fez, lamenta algumas das suas decisões, que diz ter tomado por causa do seu grande coração. 

Todos os companheiros a abandonaram, mas não os critica nem os condena. Fala deles como companheiros que lhe proporcionaram felicidade. Alguns estiveram com ela até morrerem. Ela segurou-lhes a mão no fim, ouviu-lhes o último suspiro, fechou-lhes a boca com o beijo da morte, desceu-lhes as pálpebras quando os olhos abertos deixaram de a ver. Homens que a fizeram feliz, mas sobretudo que ela fez felizes. E também o outro, por quem trocou tudo o que era seguro e seguiu rumo ao sul, que a abandonou quando os primeiros sinais da doença se manifestaram no corpo. Até deste ela fala como o homem com quem viveu os 20 anos mais felizes da sua vida.

Ao cheiro adocicado da morte junta-se o cheiro a urina, de que ela tem plena consciência. Chama a enfermeira para lhe fazer a higiene. Afasto-me discretamente. Na verdade dói-me olhar aquele corpo a desfazer-se, a morrer antes dela. Despeço-me com um até breve, sincero, pois tenciono voltar. Ela diz-me que sou como ela, querendo com isso dizer lutadora, fortalecida pela vida, pelas decisões tomadas e consequências assumidas com coragem e sem recriminações. Acena-me e repete: eu não lhe darei tréguas.

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