Tem dois contraditórios efeitos a deslocação de pessoas do interior para o litoral: saindo, deixam de poder agir contra a desertificação; quando regressam, mesmo que por pouco tempo, cobre-as espesso manto de saudade e não querem deixar de poder agir contra o esquecimento.
Assim aconteceu com António Augusto Fernandes, hoje aposentado, depois de ter sido professor em Viseu, nomeadamente na Universidade Católica.
Natural de Rebordainhos, uma aldeia do concelho de Bragança, plasmou agora em livro, sob o sugestivo título Ares da Serra, os cenários da sua infância e juventude: as gentes, os costumes, os lugares. Saudável é, mui saudável mesmo, esse intento, não apenas porque – como é o caso – facilmente nos deixarmos enlevar por uma lídima prosa que prende do princípio até ao fim, mas também porque, amiúde, como quem não quer a coisa, se acentuam contrastes, se verberam erros, se apontam soluções.
O que sumamente interessa é a evocação. Ora dê-se uma vista de olhos por alguns dos títulos das 17 narrativas: «Memórias de um pobre paraíso perdido», «potriqueiros», «malha-à-eira!», «Em louvor do larego», «As metáforas do Aidinhas», «O Tio Rasca dos Pereiros», «O presépio do Doutor Caleja», «O tio Zé Miguel, contador de histórias», «Sei um ninho!»…
Logo se depreende que há todo um recordar de pessoas e de tradições, doutros tempos: «Para que não caiam de todo no olvido, deles aqui se lavra nota, porque a grande história é a que nos moldou a infância a que pertencemos ainda quando, no entardecer da vida, ela se vai esvaindo nas névoas da memória».
E aposto que, tal como eu, muito terão pegado no dicionário para ver o significado do provincianismo transmontano larego («o amigo do lar»). É o porco pequeno, entre o leitão e o cevado e o texto constitui bom pretexto para miudamente se contar a cerimónia da matança do porco. Bem, miudamente miudamente não, porque, a dado passo, o autor contém-se e explica:
«Passo em branco a parte mais cruenta do acto, não vá algum elemento mais zelote da ASAE vir meter o nariz inquisitorial na última das matanças que porventura ainda se realize em Rebordainhos para lhe aplicar a coima e consequente proibição definitiva. Para efeitos práticos e politicamente correctos, aqui se deixa exarado que as matanças acabaram prática e definitivamente. São apenas recordações medievais» (p. 43).
Por aqui se vê também como o Autor não perde – e não perde nunca! – a oportunidade de dar a sua bicada, mostrando, neste caso, o atrás referido contraste entre a norma prescrita pelos senhores da cidade e os hábitos de antanho! Por isso, mais nos apetece citar outro passo, por sinal do mesmo texto:
«Quem não recorda o perfume inebriante de um bom naco de lombo em vinha-de-alhos a rechinar sobre as brasas de carvalho, nas noites de invernia, enquanto se seroava e o vento zoava lá fora no arvoredo?» (p- 41-42).
A linguagem preciosa e precisa, a evocação que faz crescer água na boca.
Temos o rol dos nomes locais dos cogumelos ou rouquelhos (esta eu não apanhei no dicionário…): «as rocas ou freirinhas, os míscaros, as carneiras, os tortulhos, as mozinhas, as repolgas, as línguas de vaca… eu sei lá».
É assim: um estendal de palavras que os dicionários não registam e aqui se consignam para que se não percam de todo. Depois, as histórias do volfrâmio, a luta pela defesa dos baldios (mais uma daquelas saídas de bestuntos citadinos que pouco ou nada sabem das terras), a vinda dos emigrantes pelo verão. Ora leia-se:
«Era uma nova fauna que bulia com a quietude das aldeias, arrotando postas de pescada pelas tabernas, muito anchos nas estranhas vestimentas trazidas lá de fora e batendo com estrondo sobre o balcão, roxo de muitos tintos, as notas de cem e até de quinhentos mil-réis com que pagavam as romeias de vinho e cervejas aos patrícios a quem mingara a coragem para deixarem as courelas magras e desafiarem os caminhos do mundo» (p. 93).
Mas eu volto ao porco, para mais um naco de saborosa prosa:
«O cochino, durante a ceva, era tratado com cuidados de mulher parida, com todos os mimos: farelo, grão, nabos, castanhas, as perfumadas castanhas mamotas que os ganapos pilhavam do caldeirão onde se lhe cozia a vianda».
E, a propósito da vianda – não a do cochino, mas a das pessoas –, cá vai mais uma frase lapidar: «O passadio do dia-a-dia, de uma austeridade cenobítica, esbeltava os corpos, enrijava as almas e deixava-lhes o céu garantido». Assim, em duas penadas!
150 páginas, polvilhadas de imagens antigas, impressas com data de 2022, na Tip. Beira Alta, de Viseu. Etnografia e antropologia de mãos dadas, «a ruralidade castiça da terra transmontana», como sussurra Henrique Almeida numa das badanas.