«A palavra definitivo, nos tempos apressados de hoje, parece, se não uma utopia, um insulto».
Decorreu com o natural entusiasmo a inauguração, no passado dia 23, da exposição «Desfiguração da Utopia», da artista romena-lusa Daniela Anghel, na galeria do Casino Estoril, onde ainda pode ser visitada até ao próximo dia 23.
Os visitantes ficam estupefactos – é o termo! – não apenas pelas dimensões das obras ali patentes, mas, sobretudo, pelo realismo da multiplicidade das imagens que para cada uma das telas são convocadas.
«As expectativas utópicas humanas, a falta da água, a fome a e pobreza em África, a guerra na Síria e a perda da fé como crítica do presente» – constituem, na opinião da artista. os temas ali dominantes.
Aliás, há toda uma mensagem de intervenção a perpassar pela enorme beleza do que se vê. Daniela Anghel é, também, uma pensadora que faz da pintura uma arma. Impunha-se, por isso, uma conversa.
– Quem é Daniela Anghel?
É preciso um longo desvio para falar de nós mesmos. Neste espetáculo, que é a vida, cada um de nós vive como Cristo por quinze minutos, como afirma Andy Warhol; e nem todos têm o contentamento de ser representados na eternidade como o próprio Cristo. Todos nós temos escondidos algures uma versão particular do calvário. Não estou interessada nos desastres que um pequeno calvário particular provoca, mas na força criativa indefinida em que este se exibe. Pode ser que neste estado temporário intempestivo se possa falar de qualquer coisa como eu.
– Sendo teu pai um diplomata, acabas por ser também tu uma artista itinerante. Expuseste na galeria do Casino, a mostrar-nos personalidades portuguesas retratadas em ponto grande. Que recordações tens dessa exposição?
O Doutor Nuno Lima de Carvalho apreciou, apoiou e divulgou muito a minha pintura ao longo dos anos. Claramente, estou entre aqueles que tiveram o privilégio de passar umas tardes com o Doutor Lima e a Doutora Clarinda na Galeria de Arte do Casino. Tenho muitas memorias bonitas com eles. Foi através deles que conheci também a escritora Agustina Bessa Luís e muitas outras personalidades portuguesas. Também foi ao seu apelo que fui desenvolvendo projectos de pintura que poderiam talvez não ter acontecido. Em 2004, por exemplo, o Doutor Lima, convidou-me para pensar numa exposição dedicada às Mulheres de Portugal. Embora, em muitos dos casos possam ter passado despercebidas, acredito que quase todas as mulheres que retratei tiveram um papel decisivo na história e na cultura portuguesas. A escritora e jornalista Maria Lamas, foi uma das figuras que mais lutou para os direitos das mulheres portuguesas. Na Europa, entre 1948-1950, quando ela escreveu “As Mulheres do Meu País”, foram publicadas outras obras também, sobre o conteúdo analítico de “género” na sociedade; nomeadamente “As estruturas elementares do parentesco” de Claude Lévi-Strauss e “O segundo sexo” de Simone Beauvoir entre outros. Foi uma mulher solidária e é essa pré-disposição para o outro que mais me interessou nelas.
– Foste depois para o Brasil: que novidades te trouxe, como artista, o contacto com as gentes brasileiras?
Vivi na capital, em Brasília DF. Uma cidade nova, moderna, a cidade criada pelos arquitetos Lúcio Costa, o Óscar Niemeyer e o engenheiro Joaquim Cardozo. Uma cidade viva com uma atividade cultural intensa. Um dos encontros mais interessantes que tive no Brasil foi através da arte. “A primeira Missa no Brasil” do pintor do imperador Pedro II, Victor Meirelles; o retrato autêntico e singular do povo brasileiro visto por Cândido Portinari, ele mesmo nascido numa fazenda de café; a pintura modernista da Anita Malfatti; os retratos dos africanos pintados pelo Arthur Timótheo da Costa; as obras “A Elevação da Cruz” e a “Fascinação”, pintadas por Pedro Peres; mostraram-me uma imagem totalmente nova sobre o Brasil. Era um Brasil que eu desconhecia e que, no fundo, como todas as coisas imensas que vale a pena ver, tocar, tentar compreender, continua cada vez mais desconhecido.
– Que significa este regresso a Portugal: mais uma passagem ou um regresso definitivo?
É uma passagem. Para sempre, como se costuma dizer, é muito tempo. A palavra definitivo, nos tempos apressados de hoje parece, se não uma utopia, um insulto.
– Que mensagem principal pretendes passar com a exposição que vais apresentar-nos?
Não procuro mensagens principais, respostas ou soluções, mas, sim, imagino a produção de ambiguidades geradoras de perguntas. A imagem nunca é uma realidade simples. “Para que a montagem ambígua dos corpos suscite a liberdade do olhar crítico ou lúdico, é preciso organizar o encontro” afirma Georges Didi -Huberman em O destino das imagens. As minhas pinturas mostram vários encontros de imagem/fantasma que revindicam novas forças.
São vários os méritos deste texto que se transforma em entrevista no seu corpo principal.
A exposição ainda não visitei, mas a natureza do trabalho e a personalidade da Daniela Anghel, vieram até mim, como irão aos outros leitores desta crónica de José d´encarnação. É uma ideia interessante dialogar com os artistas plásticos sobre as suas telas e comparar com o que, através delas, o público consegue visualizar.
Para mim foi interessante perceber que Daniela Anghel, mais um dos nomes acarinhados por Lima de Carvalho, é uma artista muito culta, que se ocupa de temas actuais, todos com preocupações políticas, sociais e humanas.
O título da exposição já é sugestivo, mas a revelação da artista de que não pretende passar mensagens, mas deixar ambiguidades questionáveis, é uma proposta ainda mais sedutora. E pelas imagens aqui deixadas, reveladoras da multiplicidade de espaços-tempo e personagens que povoam as suas telas, muitas perplexidades hão-de surgir, muita luz sairá, não da escuridão, mas das enigmáticas sombras dos ambientes criados.