Chamaram-lhe burro!
«Me chamavam de burro e repeti sete vezes!», declarou Waldemar Maramgoní, quando lhe perguntaram como fora a sua infância. Repetiu sete vezes quer dizer «chumbei sete vezes no mesmo ano»!
Permita-se-me que, antes de entrar no assunto que me traz aqui hoje, eu conte uma das histórias que mais me tocou na vida de professor.
Aquela aluna era das mais assíduas nas aulas. Sempre atenta. Quando, porém, li seu primeiro teste, fiquei siderado: como era possível uma aluna do 1º ano da Faculdade de Letras cometer tantos erros e não conseguir escrever uma frase direito?
Era meu hábito entregar os testes por ordem crescente de classificações, para dar oportunidade de um suspiro geral quando anunciava a primeira positiva. Uma maldade que, creio, alguns estudantes me não perdoavam, mas o que eu queria era que tomassem consciência do lugar em que estavam na escala, para mais os atiçar!
A outra maldade era, no final da entrega, ler os disparates, sem, porém, identificar o autor. Nesse dia, peguei em quatro ou cinco frases da aluna. Provocaram risadas gerais e todos se perguntavam como é que aquilo era possível.
Não acredito no acaso e, umas semanas antes, eu entrevistara no Rádio Clube de Cascais, um dos oftalmologistas mais credenciados no País e no estrangeiro, que descobrira a forma de curar a dislexia, doença de que muita gente, afinal, padece, sem disso se aperceber. Manifesta-se, por exemplo, na troca de letras e de palavras. Por isso Waldemar Maramgoní era «burro» e não conseguia passar de classe. E só o descobriu aos 35 anos!
Mais sorte teve, pois, a minha aluna.
Depois de se terem rido à vontade, eu fiz silêncio e falei à turma:
– Vocês riram-se e têm razão. Não é possível cometer tantos erros. E eu explico: o vosso colega sofre de uma doença, que porventura ainda ninguém lhe disse qual era e que eu lhe vou dizer: dislexia!
Expliquei o que era – e compreenderam.
Na altura, eu exercia as funções de Presidente do Conselho Pedagógico e fiz, de imediato, uma circular a todos os docentes: «Esta aluna, enquanto não puder ser tratada da enorme dislexia que tem, não pode ser sujeita a provas escritas, só orais». E dei aos pais o contacto do especialista que entrevistara. Voltei a encontrá-la pela Faculdade e soube que, daí prá frente, a vida escolar lhe correra muito melhor.
O Waldemar disléxico
Está provado: os disléxicos têm especial tendência para o que lhes proporciona gestos, actividade diferente, que não seja a intelectual propriamente dita. As Artes são, por esse motivo, a vereda por que se encaminham, mormente se têm a sorte de para ela serem levados por quem realmente os compreendeu.
Assim sucedeu, felizmente, com Waldemar Maramgoní, que desde cedo encarreirou pela Arte. Nascido em S. Paulo (Brasil), em 1972, teve a sorte de a mãe logo aos 10 anos, ao verificar as suas aptidões, o ter incentivado a desenhar e a pintar. E aí o temos hoje!
Em Setembro de 2018, depois do seu percurso brasileiro, Maramgoní veio instalar-se em Lagos. Com ele travou conhecimento Pedro Lima de Carvalho, da galeria do Casino, que o desafiou: descubra Lisboa!
E Waldemar Maramgoní foi descobrir!
O resultado aí está, «através de 24 trabalhos, onde retrata alguns dos bairros mais emblemáticos, como Alfama ou o Bairro Alto, a Baixa Pombalina, o Castelo de São Jorge, o Tejo e algumas cenas do quotidiano alfacinha».
Não direi, como escreveu Pedro Lima de Carvalho, que, «na busca de uma nova leitura artística, baseada em novas questões estéticas que se refletem num desenho primoroso», o artista revela «um vasto conhecimento pictórico e procedimento fundamentado numa arquitetura filosófica». É verdade, mas eu prefiro acentuar o que também se acentuou: Waldemar Maramgoní é «indiferente aos modismos»; ou seja, não há possibilidade de o associar a determinada corrente estética. É ele mesmo! E acrescento: doutra maneira não poderia ser, atendendo ao seu passado e características.
Por isso nos brinda com instantâneos carregados de cor, quase agressivos (dir-se-ia), porque é de sua natureza chamar a atenção, vincar o que vê. É provável que não sejam tantos os fios que se vêem no quadro escolhido para capa do catálogo, a riscar a fachada da igreja da Madalena. E, se calhar, também não há tantos candeeiros. Outro pintor deixaria da mão esses pormenores e recriaria o ambiente a seu jeito. Maramgoní prefere, ao invés, mostrar o que é. Que, para ele, a realidade carece de ser mostrada em tons sanguíneos, quentes, quase «naïf», no rigor dos pormenores. Para que melhor se compreenda e aprecie. Um realismo que nos deixa perplexos e, afinal, acaba por nos encantar!
Caso é para dizer: bendita dislexia!
Agradeço este texto a José d´Encarnação, por revelar um problema que era comum ainda há bem pouco tempo e que muito prejudicava a vida toda das crianças com essa perturbação da aprendizagem.
Gostei muito de conhecer a história de vida de Waldemar Maramgoni, um percurso que culminou na descoberta de si mesmo como artista plástico. E aplaudo o destaque que é dado à sua exposição.
Muitas crianças sofreram humilhações parecidas pela mesma razão. Eu mesma cheguei a ver grupos delas apartados do resto das turmas, sentados nas últimas filas com o rótulo de “burros”. E essas não tiveram a sorte dos indivíduos aqui mencionados, cresceram convencidas de que seriam inúteis para a sociedade.
Não sei se chegarei a ver estes trabalhos, mas conto reservar um dia para passar pelo Casino do Estoril-Galeria, e apreciar as qualidades deste artista.
Como sempre a gentileza e espirírito arguto do querido prof. Encarnação
Um grande abraço para o amigo e 2022 com o ombro recomposto e claro sem o maldito covid.
Beijo grande
De: Vanda Maria
Enviada: 29 de dezembro de 2021 13:43
Esta mensagem é uma maravilha por duas razões: a primeira é conhecer um artista tão especial, que retrata , de forma brilhante, com todo o pormenor, a nossa querida Lisboa; a segunda é identificar-me com a situação da dislexia, que encontrei em tantas/os alunos que por mim passaram, sem terem sido detectados na família nem na escola primária! Todos os anos fazia processos novos a crianças, para serem encaminhadas para apoio no ensino especial ( aqui na Madeira havia um serviço com professores especializados excelentes, seccionado para cegos totais ou parciais, surdos-mudos, paralisia cerebral ligeira, dislexia e outras formas de limitações, a quem era proibido designar por deficientes!). Trabalhei muitos anos com casos destes e convivi e aprendi muito com as/os técnicos desse ensino especial. Agora vivemos de memórias!…
De: C. T.
Enviada: 29 de dezembro de 2021 14:57
O professor pode ser fundamental na detecção de algumas carências dos alunos. Tive um aluno ora brilhante no raciocínio, na argumentação….e em muito mais, ora um desastre em diversas vertentes e ocasiões. Eu, jovem professora, sem conhecimentos médicos, não achei , como alguns colegas, que fizesse ” de propósito” . Acompanhei- o, falei com o pai (desculpa a expressão, “uma besta quadrada” com canudo), falei com a mãe ( um amor de senhora) e combinamos que iria ao médico. Diagnóstico: bipolar.
Muitas saudades desse jovem que um dia parou o carro na ponte 25 de Abril e voou , não sei se para a água se para o Alto.
De: Maria Delfina
Enviada: 29 de dezembro de 2021 22:35
Muito interessante. Às vezes, acontece e também tive um aluno nessas condições.
Antão Vinagre
Enviada: 30 de dezembro de 2021 20:13
Bendita dislexia! Conheço muito de perto o que é ser disléxico e o talento artístico emergente de um disléxico. Pena é que, ainda hoje, por pura ignorância, muitos sejam rotulados de burros.