Prestar reverência é dobrar o joelho, é venerar de uma maneira receosa e untuosa. A reverencialidade não é uma característica de classe, mas de um povo, no nosso caso. Cada classe reverencia a que julga acima ou os indivíduos do mesmo grupo que considera poderem ser-lhes úteis. Os portugueses são especialistas em dar graxa. Ficam a polir as superfícies, mesmo que elas nunca tenham tido brilho e não possam brilhar.
Continuam a passar a pomada e a esfregar, esfregar, como um operário na fábrica que faz o mesmo gesto três mil vezes por dia. Estão habituados. É uma forma de vida. Não reparam porque não distinguem o que brilha do que é baço. Também eles são baços e não se dão mal. Estão todos na mesma cesta. Repetem as expressões. Sobre o Natal: “passou-se”. Sobre a morte: “não somos nada.” Sobre o Governo e banca: “o que eles querem sei eu”. Parecem monges no convento repetindo as mesmas orações, às mesmas horas, com o mesmo propósito. Os portugueses têm esse lado monástico que casa tão bem com o reverencial. Nunca me hei-de dar bem num mundo reverencial. Não sirvo para isso. Como é que eu vim parar a esta cultura, a esta nação?
Fui ao Parque da Paz com as cadelas soltas. Só lá meti a pontinha, aquilo não dava para engravidar um pinheiro-fêmea, mesmo que viesse atrás de nós. Foi só um bocadinho de relva de raspão. Vi um carro de jardineiro vir ao fundo. Ignorei. Ouvi-o parar o motor do carro nas minhas costas. Continuei caminho. Contei os segundos que demorou a levantar o rabo do assento e a dar quatro ou cinco passos. Escutei um “ó minha senhora!” Voltei-me muito espantada com a interpelação. “Não pode andar aqui com os cães à solta.” “Ah, certo. Vou já sair.” “Vai sair, mas não devia ter entrado, bla, bla, bla, bla, bla…”Continuei, completamente surda e saí uns quinhentos metros à frente, depois de a Marisol ter dados umas corridas boas na relva.
O Parque da Paz é enorme, mas os cães só podem andar de trela nos caminhos. Se os cães só podem andar de trela não podem correr. Se só podem andar nos caminhos não podem usufruir do jardim, cheirar a relva e rebolar-se nela. Não percebo para que serve um jardim se não pode ser usado de acordo com a sua natureza, para que todos os animais, humanos e não humanos, nele corram e se rebolem. Eu nunca percebo nada. Tenho deficit cognitivo profundo desde criança. Passei mais de metade da vida a perguntar porquê ou, em alternativa, a fazer de conta que não via, não ouvia, não sabia, não percebia.
Costumo ir passear com as meninas para a praia do Caramujo que é o local mais feio e sujo de Almada. Não é uma praia, embora ela exista, pequena, mas um cais com barcaças de pescadores locais atadas a cruzes de ferro cravadas em pedras e cimentadas. Um horror! Se há fealdade no mundo está toda ali. Alguém para ali vai sacrificar galinhas. Já vi cadáveres de aves sem cabeça. Se precisam mesmo de sacrificar os animais, ao menos comam-nos, sacos de vazio!
Também para lá vão fazer coisas dentro dos carros. Queimar os restos de objetos dos ex-amantes. Do mal o menos. Muito lixo, muita porcaria. Se eu quisesse filmar num cenário decadente, muito decadente, onde tudo pode acontecer, filmaria no Caramujo. A única vantagem é que as cadelas podem correr em paz. É terra de ninguém. Tenho medo do dia em que reabilitem o lugar. As cadelas nunca mais aí poderão correr.
O gradeamento que separa o Caramujo da Lisnave tem atualmente um grande buraco na rede. Dá para entrar e aproximarmo-nos das docas. É proibido. É, mas está aberto. Portanto, no outro dia resolvi entrar com cadelas, de mãos nos bolsos, para conhecer a Lisnave onde nunca tinha entrado.
Vi um mural do Vhils ao fundo e lá me encaminhei para a parede em questão. Grandes docas. Interessante. Vi a Marisol parar e ficar muito atenta a algo que estava muito longe. Olhei na mesma direção e pareceu-me ver e ouvir alguém a gritar. Mas eu vejo muito mal e com o vento fico muito surda, de maneira que não vi nem ouvi nada. Continuei. Quando me aproximei do belo do mural do Vhils, percebi que um carro com características militares vinha a toda a velocidade do outro lado – o da estrada que vai para Cacilhas. Assobiei às meninas, esfreguei as mãos e disse-lhes, “vamos que já chega de passeio”. Voltei pelo mesmo caminho.
Espetaculares docas. Ali cabiam navios dos grandes. Vinha na boa, devagarinho, no meio do caminho asfaltado, quando uma das cadelas se atrasou. Voltei-me para trás, procurando-a. Havia um carro com militares, creio que da Marinha, a seguir-me. A trinta metros de mim. Deu-me vontade de rir, mas fiquei apenas muito surpreendida. Acho que até abri a boca. Afastei-me toda para a borda, com grande mesura, para os senhores passarem. Não queria estar a incomodar. Deviam estar na hora da guarda ou isso e eu estava a empatar. Passaram, olharam para mim, para as cadelas. Uma cota de fato de treino, toda despenteada a passear com os cãezinhos. Eu tinha percebido tudo, sei por onde o carro seguiu e estranhei não o ver reaparecer. Mas sei lá se não caiu ao mar, com a velocidade a que ia. Não me cabe controlar a forma como os militares conduzem carrinhas.
Saí pelo mesmo buraco por onde entrei. Adorei ver o mural do Vhils e as docas. Não toquei em nada. Apanhei o cocó das cadelas. A Marinha devia agradecer-me o interesse e estima que tenho pelas suas instalações. A minha vida é uma anedota. Assim seja para sempre.
Crónica também publicada em “Diário da Revolta”, Facebook de Isabela Figueiredo
O título desta crónica é da responsabilidade do editor do site Duas Linhas