Não sabia, nem imaginava sequer que em Portugal houvesse tantos cumpridores do Código da Estrada. Descobri através das ditas “redes sociais” que uma imensa percentagem de indignados juízes de causas alheias nunca ultrapassaram os legais 120 km/h nas autoestradas do país e nunca, jamais, pisaram a faixa da esquerda. São virgens de qualquer infração. Impolutos e justiceiros sem contraditório. Nunca se emocionaram tanto como com o triste atropelamento de um trabalhador numa autoestrada, saído do mais improvável e inesperado lugar da uma via rápida. Uma grande infelicidade para todos os intervenientes.
Lamento a perda do trabalhador, chefe de família, e penso na dor dos seus mais próximos familiares, amigos e colegas na infeliz hora que atravessam. Igualmente lamento e respeito o falecimento de 504 outras pessoas vítimas de atropelamento por viaturas nos últimos cinco anos em Portugal.
Quando se trata de morte, não existe hierarquia seja de que espécie for. Toda a morte é uma perda irreparável.
Como condutor com carta há mais de 60 anos, filho de um antigo perito de viação e trânsito, tive a felicidade até hoje de nunca ter passado pela situação extrema de atropelar uma pessoa. Mas sei o que isso pode representar para quem protagonizou tal situação. Aprendi que na estrada a vida perde-se em décimos de segundo. Não só a vida terrena mas também a vida que cada um tinha momentos antes.
Tudo se resume a um tempo de reação, aos segundos em que se percorre uma distância, ao espaço e ao tempo que fogem ao controlo. Um acidente grave fica marcado para o resto da vida. A imagem do que se passou naquele horrível momento fica para sempre cravada na memória e é repetida em sonhos maus.
O acidente que todos os estimados leitores perceberam a que me refiro, ganhou dimensões extraordinárias e oportuno aproveitamento político. Muitos sustentam a inabalável opinião de que o carro circulava a 200 km/h naquele local como se tivessem estado lá de cronómetro na mão.
O carro envolvido no famigerado acidente, segundo dados da marca, precisa de quase 20 segundos para ir dos 80km/h aos 180 km/h. Não é líquido que um carro a circular a velocidade superior à dos outros consiga manter essa velocidade de forma constante. Há sempre situações a exigirem correção da velocidade. E da trajetória.
Embora se registem acidentes acima da velocidade máxima legal, estudos comprovam que a maioria dos acidentes mortais ocorrem até 64 km/h. Quando um veículo viaja, por exemplo, a 100 km/h, e embate num obstáculo à sua frente, raramente no momento do impacto a velocidade é de 100 km/h porque, antes da colisão, o instinto do condutor é tentar imobilizar o veículo o mais depressa possível. Nos testes de choque feitos por organismos europeus verifica-se claramente o resultado de um embate a 64 km/h. A zona de embate fica totalmente amassada devido aos painéis de absorção de impactos de que são feitas as frentes dos carros modernos. Só uma peritagem rigorosa e independente poderá determinar as causas de tão nefasto acontecimento. Até lá, continuaremos a assistir a mais especulação do que discussão séria.
De uma coisa estou certo: o acidente não aconteceu por o carro não ter registo.
Para quem circula com frequência fora das zonas urbanas deixo aqui alguns elementos que julgo interessantes, para ponderação:
– um carro a 120 km/h percorre 33,3 metros em 1 segundo;
– a150 km/h faz 41,6 metros em 1 segundo;
– a 200 km/h percorre 55,5 metros por segundo.
– 33 metros correspondem a 3 vezes a distância entre a marca de grande penalidade e a linha da baliza de um campo de futebol normal; 55 metros é a distância de meio campo de futebol;
– 1 segundo equivale, em média, a três piscadelas de olho;
– em média, o tempo de reação de um condutor situa-se entre os 3/4 de segundo e 1 segundo o que significa que, a 120 km/h, entre o ver e o reagir, o carro percorreu entre 25 e 33 metros.
-a distância de travagem até imobilização total de um carro do tipo do envolvido no acidente é cerca de 38,3 metros a 100km/h; e de 62,5 metros a 120 km/h.
(a estes valores convém adicionar a distância percorrida durante o tempo de reação).