Depois da independência das colónias, os novos regimes derrubaram ou retiraram as estátuas dos colonizadores. Em alguns casos, as estátuas foram vandalizadas. Foi a catarse normal, depois de séculos de opressão. Em Maputo, por exemplo, a estátua de Salazar foi retirada da rua e está na Biblioteca Nacional virada para a parede, um “castigo” eterno.
Depois do 25 de abril, em Portugal os revolucionários fizeram cair, uma por uma, as letras S – A – L- A – Z – A – R da ponte sobre o Tejo. A estátua do marechal Carmona (Presidente da República entre 1926-1951) foi retirada e está hoje no jardim do Museu da Cidade.
Em todo o país, talvez houvesse duas ou três estátuas de Salazar. Uma delas, a que estava na terra natal do ditador, em Santa Comba Dão, foi decapitada. O passado nem sempre traz boas memórias.
Noutros locais, onde entretanto o passar do tempo já amaciou as fricções da História, há memórias que permanecem. Calhou-me em sorte passar várias vezes pelo Quénia e percorrer boa parte desse interessante país. As memórias coloniais permanecem por ali. Os quenianos “deram a volta ao texto” de um modo muito pragmático. Lembram aos visitantes que aquilo são símbolos da opressão colonial e contam a História sob o seu ponto de vista. É o caso, por exemplo, do Forte Jesus, em Mombaça.
Fort Jesus, Mombasa, Kenya. Built by the Portugese in 16th century. UNESCO World Heritage Site. Photographed in 1975, Scanned film with grain.
Forte Jesus é um castelo seiscentista português. Tem a particularidade de ter sido construído com coral da baía de Mombaça. Os portugueses só sabiam construir em pedra e não havendo pedra em terra, foram ao mar buscá-la… a baía era rica em coral rosa, de modo que o Forte Jesus tem muralhas cor-de-rosa. Hoje diríamos que foi um crime ecológico.
Mas é a única coisa cor-de-rosa que o castelo tem. Tudo o resto faz lembrar guerras e morte. Os quenianos, que tão bem conservam o castelo, vão ao pormenor de venderem um pequeno livro com a história do local. Um pequeno livro cheio de 200 anos de guerras, morte e escravidão, afinal de contas, os ingredientes da História. Que começa assim:
“The Portuguese showed up in 1505 and took the town. The fighting took the lives of 1513 Mombasa defenders and 5 Portuguese attackers. After looting Mombasa and setting it on fire, they left and did not return for 15 years. The Portuguese looted the town again in 1528 and twice more in the 1580s. Two years after the last attack, Mombasa went on the offensive and attempted to conquer Malindi. The Mombasa attackers were massacred and the town fell shortly thereafter in a counterattack by Malindi, which turned Mombasa over to the Portuguese. The Portuguese began construction on Fort Jesus, which was finished in 1593”.
Tradução: Os portugueses chegaram em 1505 e conquistaram a cidade. Nos combates morreram 1513 defensores de Mombaça e 5 portugueses. Depois de saquear a cidade, pegaram-lhe fogo, foram-se embora e não voltaram durante 15 anos. Em 1528 voltaram a saquear a cidade, e mais duas vezes na década de 80 desse século. Dois anos depois do último ataque, Mombaça contra-atacou em Malindi (a praça-forte de Portugal naquela zona da costa africana). Os atacantes foram massacrados e Mombaça caiu nas mãos dos portugueses. A construção de Forte Jesus ficou concluída em 1593.
Mas este é apenas o relato do início de 200 anos de combates pela posse do forte. O Forte Jesus mudou de mãos nove vezes, na disputa entre portugueses e os árabes de Oman que dominavam aquela zona da costa africana. Os portugueses foram derrotados definitivamente em 1729. É interessante perceber como os outros sentem a História comum. Mesmo se não ficamos muito bem no retrato.
Mas hoje o Forte Jesus é atração turística, livro de História e caixa registadora do dinheiro que eles cobram pela venda dos bilhetes de entrada no castelo que os portugueses construíram. Ou seja, deixem ficar o tal Padrão dos Descobrimentos e dêem-lhe o uso adequado: ensinar o que foi a primeira globalização e que consequências sociais, económicas e políticas implicou.