A morte e o jornalismo

Diz o Código Deontológico dos Jornalistas, no seu artigo 2º: "O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo (...)", e mais à frente, no artigo 8º, em parte, afirma que " (...) o jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor".

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É por demais sabido que os media do Grupo Cofina, em particular o Correio da Manhã e a CMTV, pisam em cima do Código Deontológico dos Jornalistas todos os dias, com auto-satisfação e falta de vergonha na cara. O mais recente exemplo disso foi a cobertura mediática da morte precoce de uma jovem figura pública.

Com apenas 21 anos, a jovem, filha de um cantor famoso e ela própria aspirante a cantora, morreu num acidente de viação no sábado dia 5 de Dezembro, na zona de Santarém, quando regressava de automóvel com o seu namorado do Porto, onde foi alegadamente tratar de negócios. Outras três viaturas estiveram envolvidas no desastre, de onde também há a lamentar três feridos, entre os quais uma criança de dez anos. O namorado da jovem ainda se encontra hospitalizado.

No meio da comoção causada pela morte da única filha do artista, começaram os sinais de que iria haver media a portar-se mal: apesar da SIC e TVI dizerem que por respeito à trágica morte da jovem não iriam continuar com as suas habituais programações dominicais, interromperam os filmes várias vezes para falarem da falecida cantora. Mas quem bateu o recorde do sensacionalismo e exploração da desgraça alheia (e não dá sinais de abrandar) foi a nossa Fox News, isto é, a CMTV: a emissão sobre o acidente aparatoso era ininterrupta, as imagens repetiam-se e fizeram orelhas moucas ao pedido expresso da família. Num texto divulgado pela imprensa, a família da jovem agradecia “o carinho” e “o amparo” demonstrados pelas mensagens de solidariedade e pedia ainda “humildemente a todos, sobretudo à comunicação social, que nos permitam despedir com a paz e com a privacidade que a nossa família neste momento precisa”.

Como sempre no mundo dos órgãos de comunicação social, onde parece que o jornalismo já há muito que “jaz morto e apodrece”, houve quem fizesse de conta que não leu e preferiu dar prioridade às audiências ou cliques. Um site denominado VoxPopTV publicou mesmo fotos do caixão com o corpo da jovem a chegar à Basílica da Estrela, onde decorreram as exéquias. O Correio da Manhã, esse, foi criticado por ter divulgado fotos do pai da vítima a chegar ao velório, com comentários deste calibre na página de Facebook da publicação: “Abutres”; “Vergonhoso só pensam em dinheiro”; “Nojo de jornalismo”; “CM e FLASH perderam 1 seguidora devido a esta falta de respeito. Se todos fizessem o mesmo em vez de virem criticar, deixariam de ter o protagonismo que têm. Oxalá nunca passem por esta tragédia”; “Noticiar é um direito. Chafurdar uma dor destas, seja de quem for, é amoral e psicopata. Ainda para mais tendo a família pedido HUMILDEMENTE que os deixassem em paz”, só para reproduzir alguns. Nas vésperas do funeral da vítima do acidente, um dos meios da Cofina gabava-se de ter tido audiências recorde precisamente no dia a seguir à morte da jovem, despoletando nas redes sociais um número considerável de opiniões a condenar tal atitude.

Não vou aqui alongar-me sobre o drama brutal de um pai e mãe perderem uma filha numa idade tão promissora e cheia de projectos. Seria preciso uma edição inteira do Duas Linhas sobre aquela a que chamo “a guerra civil silenciosa” que é a sinistralidade rodoviária em Portugal, que tantas centenas de vidas, jovens ou menos jovens, já custou e tantas sequelas físicas e psicológicas ainda hoje deixa como rasto, e que não parece haver maneira de ser desacelerada ou travada.

Creio ser também desnecessário lembrar a brutal iliteracia mediática, a falta de consciência e educação da população e o mórbido interesse pela desgraça e dor alheias para explicar como é que meios de comunicação social do calibre da CMTV continuam a ter as audiências que têm. Apenas ouso perguntar, em nome das Saras, Carolinas, Fátimas, Célias, Joanas, Marias, Filipes, Miguéis, Josés, Carlos, Albertos, Antónios, Bernardos, Gonçalos, das vítimas famosas e anónimas desta desgraça: onde anda a Entidade Reguladora da Comunicação Social? Quando é que esta ou o Sindicato dos Jornalistas vão dizer “acabou a brincadeira” perante esta abjecta cobertura mediática em torno de mais um acidente, que faria “apenas” mais uma vítima mortal na juventude, não fosse a vítima filha de um famoso cantor popular? Não existe dentro dessas instituições uma única pessoa atenta, especializada nestes fenómenos, cuja atenção a esta cobertura infame não passe da justa indignação à necessidade de acção para dizer basta a este tipo de sensacionalismo, que faria o mais reles tablóide inglês parecer um jornal sério? Para quando uma revisão rápida e profunda das regras estabelecidas para atribuição, revisão, suspensão ou anulação das licenças emitidas a estes media, para que aprendam que não vale tudo? Para quando a revisão das regras de suspensão ou anulação da carteira profissional de jornalista, que os membros da Cofina ostentam sem mérito algum?

Que descansem em paz os que tombaram nesta infame guerra civil silenciosa e que os vivos os saibam homenagear, de entre outras formas, com uma reflexão e mudança de comportamentos na forma de consumir o que os media lhes apresentam, para que as coisas mudem para melhor.

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