Esta semana, a paisagem, as hortas e as ribeiras espraiaram-se pelas páginas dos jornais a propósito da morte de Gonçalo Ribeiro Telles. No contexto atual de crise global do ambiente e do clima, a visão do arquiteto paisagista, que durante décadas nos falou da importância do ordenamento do território e da criação de corredores ecológicos, impõe-se com urgência. E não deixa de ser estranho como, apesar do que nos deixou e nos ensinou, haja tanta obra em curso ou em projeto que vai frontalmente contra aquilo que foram os seus ensinamentos e alertas.
Se hoje entra pelos olhos dentro que é preciso travar a construção e o betão, conservar o solo, a água, proteger a paisagem, os leitos dos rios –, essa visão ecologista era muito menos óbvia, em Portugal, há 40 anos, quando o então Ministro de Estado e da Qualidade de Vida (1981-83) instituiu a Reserva Agrícola Nacional (RAN), “o primeiro passo na concretização de uma política de ordenamento do território à escala nacional”, e depois a Reserva Ecológica Nacional (REN), “que integra todas as áreas indispensáveis à estabilidade ecológica do meio e à utilização racional dos recursos naturais, tendo em vista o correto ordenamento do território.” Praias, dunas, cabeceiras e leitos dos cursos de água e faixas amortecedoras, escarpas, entre outros ecossistemas costeiros e interiores, constituíam a REN, e nesses solos ficavam proibidas, nomeadamente, vias de comunicação, construção de edifícios, aterros e escavações, e destruição do coberto vegetal.
Hoje, em contexto de alterações climáticas e eventos climáticos extremos, de falta de água, de riscos associados ao aumento do nível da água do mar e à ocorrência de cheias, entra pelos olhos dentro que impermeabilizar solos em cabeceiras de rios, ou construir em leito de cheia, é um atentado ambiental e um fator de risco agravado para pessoas e bens em caso de precipitação intensa. É hoje inquestionável a necessidade de termos mais natureza nas cidades, árvores que são sumidouros de carbono e reduzem o efeito de ilha de calor, hortas urbanas, rios com as suas margens naturais e corredores ecológicos. No entanto, ao longo das últimas décadas, não raras vezes se contornaram os regimes de RAN e REN para dar lugar à construção de infraestruturas, edifícios e grandes empreendimentos, e infelizmente os atropelos às áreas de reserva ecológica e potencial agrícola continuam atualmente. Porque a verdade é que, apesar da importância destes instrumentos jurídicos de ordenamento do território, eles foram e continuam a ser mal amados por quem quer construir não importa onde, e põe o lucro económico do curto prazo à frente de tudo (sem fazer contas aos prejuízos económicos e custos ambientais e para a saúde humana, no futuro).
Na área de metropolitana de Lisboa não faltam exemplos dessa lógica de vistas curtas, cada vez mais perigosa para a sustentabilidade dos ecossistemas e para a qualidade de vida nas cidades.
Basta olhar para a Serra de Carnaxide, um pequeno pulmão de 600 hectares entre os concelhos de Sintra, Amadora e Oeiras, e constatar o erro que foi aprovar o que já lá está, e o erro que é que aprovar-se mais um projeto urbanístico numa área natural tão importante para toda a área metropolitana de Lisboa, em termos de qualidade do ar, saúde pública, e adaptação às alterações climáticas. Lá estão os valores da paisagem (e que vista até ao mar!), biodiversidade, solo e água numa importante área de infiltração natural. Ou olhar para a foz do rio Jamor e perceber a enormidade de planear para ali um mega empreendimento, em pleno leito de cheia, criando estrangulamentos na parte final da linha de água e à beira Tejo quase mar. Ou saber que o traçado da Via Longitudinal Sul, a via rápida que Isaltino Morais insiste em construir entre Paço de Arcos e Caxias, atropela a reserva ecológica e que a obra só poderá ser feita se for declarado o “relevante interesse público”.
Ora, construir em qualquer destes locais é precisamente contra o interesse público, atentatório do bom senso e do princípio da precaução, porque agrava os riscos que já enfrentamos hoje. E não é a engenharia que nos resolverá todos os problemas se não soubermos trabalhar com a natureza. Oeiras é um município onde os ensinamentos de Ribeiro Telles foram desbaratados, e onde o que se projeta para o futuro em termos de ocupação do solo acelera na direção oposta do corredor ecológico que precisamos urgentemente de construir para assegurar o bem-estar das gerações vindouras.