Antes do anoitecer
Pus o filme a correr e avancei para o sono. Gosto de virar costas ao ecrã, seguir os diálogos até as vozes de calarem. Por volta das três da manhã deixei as pestanas caírem.
Acordei muito antes do despertador. Pus a nova cafeteira ao lume (a antiga morreu no final do confinamento), bebi uma caneca à janela, o dia estava quente, invadido pelo sol. Que bom.
Estendi cá fora a roupa que teimou em permanecer húmida, não obstante a temperatura máxima da máquina de secar. Agradeci ao sol a gentileza.
Engoli um sumo, peguei na mala, na máscara, no casaco verde, bem quentinho. Saí há pouco de uma constipação, não posso facilitar.
O Rossio estava movido, os Restauradores deixavam ver o verde quase infinito da avenida. Segui pela Rua da Palma, cheguei ao Intendente. Pouca gente, nenhuma gente que conheço, este largo já não é o meu. Subi a Almirante Reis, encontrei os frascos com tampas vermelhas para as especiarias. Não posso mais ver na bancada tantos sacos e saquinhos de plástico.
Comprei uma camisola bordeaux que vai bem com os meus batons mas o maldito vírus levou-me esse hábito, quando tiro a máscara os lábios estão meio esborratados. Pode ser efémero mas gosto dos meus batons fortes, detesto máscaras.
Comi uma salada, fiz sopa de legumes, um conforto quentinho para o jantar. Pus-me a falar online com amigos e as pestanas começaram a cair. Enrolei-me no lençol fresquinho, acordei com o primeiro alarme, levantei-me ao segundo. Uma sesta de hora e meia e saltei da cama revigorada. O dia continuava à janela mas pouco depois a noite raptou a luz, ainda não eram sete horas. A escuridão invadiu-me, a boa disposição escapou-me. Que maldade. O Inverno não chegou oficialmente mas entrou pela clandestinidade com a mudança de hora.
Olhei para os documentos que tinha de enviar e deixei-os estar. Não tive cabeça para continuar as conversas online, não tive coragem para arrumar a roupa de Inverno, não pus os edredões lavados na cama nem fiz a caminhada depois do jantar. Parecia que eram duas da manhã. Aproveitei a luz de dia ao máximo mas a noite precoce acabou por me roubar a energia. Não faz mal, amanhã chego outra vez a horas ao sol. Não me posso atrasar, a escuridão é pontual.
Antes do amanhecer
Acordo às sete, ainda é noite. Bebo o café à janela de frente para a escuridão. Regresso à cama, são só cinco minutos. Não foram, foram muitos mais, perdi comboios atrás de comboios para apanhar a luz do dia. Fujo da cama atrás dela, escolho uma fatia de bolo calórico no café. Três anos nas ancas, três minutos de prazer. Precisei dele. O sol está preguiçoso, eu também. Compras comigo, largo o supermercado, o sol larga-me com rapidez.
Passo pela fila invisível dos turistas à espera do 28. Do outro lado há uma fila bem visível dos sem abrigo à espera de uma refeição quente. Nem o maldito vírus nem o Inverno conseguiram acabar com ela. Apanho as escadas rolantes da Saúde, a praça fica cada vez mais longe, cada vez maior, mais feia. O Martim Moniz é feio, tão feio, é urgente um verde para que se possa respirar por entre o betão que ali reina.
Abro uma garrafa de vinho e peço ao Chico Buarque para cantar para mim. Assim fez e antes de sair deu-me um abraço. Abraço a escuridão. Depois da visita da vizinha consegui finalmente acabar o filme da espia russa que passou para os EUA, depois para a Rússia mas ao serviço dos EUA. Uma indecisa. Passei os olhos pelas minhas séries preferidas, uma delas tinha um episódio novo. Fiz um chá e entrei nas três gerações daquela família que assistiu à morte do George Floyd e vive num mundo de máscaras. Tinha abraçado a noite mas a actualidade do episódio trouxe-me de volta à dura claridade destes tempos modernos. Sentei-me na mesa e comecei a escrever. A meio do texto a luz disse-me bom dia.