Há dias que não têm horas, minutos ou segundos, os relógios param, porque não há tempo para se contar o tempo, de repente estás a viver um filme de ficção científica com horror à mistura e a tua vida torna-se no teu instante… uma vida vivida na primeira, segunda e terceira pessoa do singular e do plural.
Aceitas as regras, cumpres com elas, mas ainda assim és apanhado na curva daquele vírus bastardo que veio mastigar emoções, criar distâncias e provocar aquilo que acharíamos que seria algo do passado … a pandemia, que palavra assustadora que me remonta ao século 17 e às máscaras em forma de bico de pássaro.
E é tudo tão de repente, porque de repente sentes febre, dores musculares, tosse seca, falta de apetite e cais na cama para lá ficares 9 dias, porque sempre foste saudável , porque achas que vais vencer e tudo o que parece mau vai passar com meia dúzia de paracetamol e 14 dias em casa, e perguntam-te se respiras bem, sim, achas tu que sim, esquecendo que o vírus é silencioso e te está a asfixiar não levando o oxigénio ao sangue, enquanto te derrete os alvéolos pulmonares e te provoca uma pneumonia.
Está com falta de ar!? Não, dizes tu já sem força na voz. E assim te arrancam da cama do quarto onde passaste 9 dias para te levar para um quarto de hospital, lá no fundo, bem no fundo do corredor em que por companhia tens uma máquina de suporte respiratório de compressão… o tal ventilador, um não evasivo, tiveste sorte no meio do azar ( nunca percebi isto da sorte no meio do azar ) e tu gritas por ajuda… achas que estás no purgatório, os dias vão passando e tu vais arranjando forças para rever em slides a tua vida e vês e revês e tornas a ver… e os dias passam, não consegues dar passos sem que não sintas exaustão extrema, não consegues falar sem ser com uma voz arrastada, rouca, sem vida. E os dias passam.
Entretanto o teu núcleo familiar divide-se em sintomas diferentes, uns com urticárias, outros com sintomas ligeiros de febre, como se de uma constipação se tratasse, com a diferença do cansaço, condição sine qua non nesta “peste”… o cansaço, o vírus veio para cansar a humanidade, diziam que era para pararmos e reflectirmos, ninguém consegue parar em paz ou ter força para reflectir quando o cansaço é extremo.
Enquanto isso a segunda pessoa vai levando tabuleiros aos que se isolam nos quartos, isolar no quarto alguém que não tem força para se manter em pé. Não se isolam os nossos amores, não se abandonam os nossos amores numa cama à espera que faça algo por ele próprio quando nem força tem para levantar um braço. Por isso a segunda pessoa não pára, não tem tempo, não existe tempo quando o vírus te entra em casa, continuas e continuas até estares exausta.
A segunda pessoa que teve como sintoma a urticária, a coceira sem fim, as marcas desagradáveis na pele, a sensação de queimadura que persiste dias e dias, as dores de cabeça fortes que a acompanham com ou sem medicação, continua, continua a andar como se de uma guerra se tratasse onde só vê cair pessoas sem ver a bomba que lhe acertou, porque desta vez, é invisível.
Essa segunda pessoa fica à espera da primeira que está a rever a sua vida em slides lá ao fundo, num quarto de hospital afastado, sem visitas, com suporte respiratório, mas sem amor, só com máscaras, a humanidade passou a não ter rosto, somos máscaras .
A terceira pessoa isola-se num quarto, mas só com sintomas ligeiros, pede para se deixar o tabuleiro na porta, a segunda pessoa que enquanto se coça e leva tabuleiros, leva sobretudo amor… e entra, entra sempre nos quartos, sem rosto, só com máscara mas carregada de amor. Mais 10 dias se passam, até ouvires que a primeira pessoa tem alta hospitalar, a segunda a que nunca parou de se coçar nem de andar, vai assim buscar a primeira para que venha para casa juntar-se à terceira que além de ser ainda uma adolescente consegue ser o braço direito da segunda, a tal, a que se coça .
Finalmente temos a primeira, a segunda e a terceira pessoa do singular todos reunidos, a primeira ainda em convalescença, com cansaço extremo, voz arrastada e ainda alguma tosse, sente-se acima de tudo revoltado por ter apanhado um vírus que o levou a um ventilador, ao oxigênio, mas sobretudo tirou-lhe qualidade de vida. A segunda continua a dar abraços, a terceira envolve os abraços e assim nos tornamos na quarta pessoa, no plural … Nós!
Há também Eles, que são os que ficaram isolados na sua casa, com sintomas ligeiros diversos, desde o bebé de 1 mês, à criança de 2 anos, ao pai e à mãe… eles que são meus, que a distancia não separou nem o isolamento afastou.
Eles que são filhos, são netos, são maridos, são mulheres, são avós, são tios, mas são acima de tudo pessoas… somos Nós… nós todos!
Quanto a Vós, tenham atenção, o vírus não conhece fronteiras, não conhece géneros ou idades, ataca o que de mais fraco vocês tiverem quando ele vos bater á porta, não há fórmulas, não há datas, aquilo que é com uns não é com outros, as forças para o combater vão ter que as ir buscar a todo o lado, da distância se faz perto, tive comigo (a segunda pessoa sou eu) a maior força dada pelos amigos, teria sido muito mais difícil sem o apoio deles, ele o meu companheiro de vida (a primeira pessoa) teve o meu apoio sempre e que ia carregado da vossa força, ela a minha filha (a terceira pessoa) foi onde ia diariamente buscar o amor só com um olhar atrás da máscara, aos meus netos, filho e nora (Eles) ia buscar forças em forma de sorrisos, de amor através da objectiva da câmara do telemóvel. Somos vídeos, somos fotos, somos memórias, somos tudo menos tocáveis …
Quanto a Vós…cuidem-se… seja lá em que língua for.
Um mês se passou, entre testes, sintomas e internamentos, a vida virou-se do avesso, mas há que saber andar com as calças ao contrário e os sapatos trocados.
Este relato poderia ter sido escrito em qualquer país do mundo, o meu particularmente foi escrito em Oxford, onde vivo há sete anos, sete, esse número dizem, tão bíblico.
Eu, tu, ele, nós, vós, eles, somos o mundo, somos o verbo e o vírus anda aí para o destruir… silenciosamente.
Cuidem-se !
Lia, li o artigo em Novembro de 2024, parece um conto, poema, drama literário, o real ultrapassou a ficção. Que bem escrito e descrito. Eu, no que me toca e entendi, gostei muito de ler o artigo, o titulo suave agora em 2024, não antecipa o pavor dos eventos que acredito terem sido reais na altura.
Deixo o agradecimento à segunda pessoa, tu, pela partilha sentida.