A mirabolante história do Machadinha, capitão-de-mar-e-guerra

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Já se disse quão pormenorizado fora o relatório que o Prior da igreja da Assunção, de Cascais, preparou como resposta aos quesitos elaborados a mando do Marquês de Pombal, na sequência do terramoto de 1755.

Não se trata, apenas, de uma atitude do género «casa roubada, trancas à porta», porque se, de facto, muito do património irremediavelmente se perdera, também foi intenção  do Marquês e dos seus conselheiros sentir um pouco o pulso do País e o que do passado de cada terra seria de todo o interesse salvaguardar pela memória e não só, caso alguma outra diligência houvera de se empreender.

De um modo geral, os priores – até porque mais interessados na resolução dos problemas quotidianos do seu ‘rebanho’ – não terão levado muito a peito dar respostas amplas, pormenorizadas, procurando, portanto, desenvencilhar-se o mais rápido possível de uma obrigação que os arredava do seu múnus pastoral específico.

O Padre Marçal da Silveira, todavia, ou porque dispunha já de muita informação ou porque tivera quem o ajudasse ou porque, na verdade, já nessa altura Cascais apresentava características próprias no quotidiano das suas gentes, o certo é que deu largas ao seu repositório e até nos parece que nisso teve gozo maior.

Poderemos selecionar, para já, a história do Machadinha contada no quesito sobre eventuais ‘homens insignes’ de que na paróquia memória houvesse.

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Ficou toda a companha cativa de piratas. Contudo, se os mais foram passados para o barco inimigo, a ele, a um preto e a outro companheiro os deixaram estar, juntamente com os piratas que saltaram para a embarcação e dela se apoderaram.

Duarte Pereira magicou, pois, o plano para se safar. E acertaram os três no que haviam de fazer, até porque os piratas se iam recolher nos baixos do barco e o capitão decidira ir descansar na popa.

Assim, deu-lhe vontade de comer um coco e pediu-lhes uma machadinha para o cortar.

Aguardou que os ânimos serenassem e os piratas fossem descansar da presa feita. Os prisioneiros estavam no outro barco e estes três gatos pingados bem temerosos estariam de algo lhes acontecer, caso ousassem qualquer rebelião.

A um sinal do comandante, entraram os três em acção: ele chegou-se ao capitão que dormia e, em vez de usar a machadinha para cortar o coco, rachou-lhe com ela a cabeça, sacou-lhe o alfange e a espingarda; o preto foi-se ao pirata que, distraído, comia junto da amurada, pegou-lhe nas pernas e atirou-o ao mar; o terceiro correu a trancar a escotilha, a fim de os de baixo não poderem de lá sair. Havia ainda o gajeiro no cesto da gávea, que, ao observar a cena, se dispunha já a descer para lutar contra os sublevados; Duarte Pereira apontou-lhe a espingarda e o pobrezinho deixou-se ficar.

Largou pano o barco em direcção ao Algarve, aonde aportou são e salvo.

Conta o Padre Marçal da Silveira que governava então o Reino do Algarve o Marquês de Cascais, D. Manuel, o qual, ao saber do sucedido, apresentou Duarte Pereira a el-rei D. Pedro II, «que o premiou com o bastão de Capitão de Mar e Guerra», o que contribuiu para imortalizar a alcunha de «O Machadinha» e a sua fama. Acrescenta o prior que o capitão «tem dois filhos de grande literatura: um que tem servido em várias judicaturas e outro que serve na Relação Patriarcal e foi vigário geral em Santarém».

Acrescente-se que o referido D. Manuel é D. Manuel José de Castro Noronha Sousa e Ataíde (1666 – 1742), de seu nome completo, 3.º Marquês de Cascais e 8.º Conde de Monsanto, um dos mais prestigiados nobres da época, atendendo, inclusive, ao elevado número de títulos que detinha e cuja extensa relação pode ler-se nas páginas 548 e 549 do vol. II (1736) da História Genealógica da Casa Real Portugueza, de D. António Caetano de Sousa, que sobre ele escreve:

«Foi nomeado governador e capitão general do reino do Algarve no ano de 1707, posto que exercitou com tanta gravidade como acerto, de sorte que será sempre venerável naquele Reino o seu governo, ficando sendo o valedor de todos os beneméritos do Algarve, porque continuamente recorrem à sua protecção».

E, de seguida, não se coíbe de afirmar (p. 550):

«Deste grande senhor pudera eu fazer um largo elogio, pelo íntimo conhecimento das suas excelentes virtudes, que, juntas com uma natural afabilidade e um engenho elevado, o fazem geralmente estimado».

Começámos, pois, por contar um arriscado episódio da luta que, nesse movimentado século XVIII, amiúde se tinha de travar na costa portuguesa contra os corsários e piratas, sabedores das preciosas cargas que os barcos portugueses amiudadas vezes traziam. E acabámos por saber das elevadas qualidades de um dos mais ilustres senhores de Cascais, o 3º Marquês, D. Manuel José de Castro Noronha Sousa e Ataíde.

1 COMENTÁRIO

  1. Um texto muito interessante, com laivos de humor latente, como é costume em José d´Encarnação, recheado de informação com História, paisagens e gentes.
    Sobre a “generosidade” de Padre Marçal da Silveira em corresponder ao quesito do Marquês de Pombal (sempre à cata de “eventuais homens insignes”) podemos interpretá-la como mais egoísta que altruísta: os outros padres cuidariam do sigilo “profissional”, ele veria ali uma forma de agradar a um grande senhor de Cascais, 3º. marquês da vila, e em boa posição para retribuir a deferência.
    Engraçado, típico dos poderes e amiguismos em redor, é que não seria Duarte Pereira a verdadeira estrela deste relato. O seu feito, resgatar o barco aos piratas e conduzi-o ao reino do Algarve, teria menos importância na exposição do que a recepção que lhe fora dada pelo ilustre marquês de Cascais. Era ele quem apresentava o marinheiro ao rei D. Pedro II e contribuía para que o rei o distinguisse com o bastão de capitão de Mar e Guerra.
    Recomendo a leitura destas linhas,

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