Memórias de infância e de hoje

A ROMARIA DE NOSSA SENHORA DA CABEÇA

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Fica nas Antas, no concelho de Penedono, esta ermidinha com jeito mesmo popular, ali pousada em sítio ermo, à volta pinheirais, alguns campos de milho, umas tiras de horta e uns pés de fruteiras. Que, ali, são duros os invernos, nessas planuras dos novecentos metros que se prolongam, subindo para a Meseta, desde a Serra do Cirigo.

Há antas ou dólmens por ali perto. É possível ir vê-los em excursão ligeira e há outro tipo de sepulturas antigas cavadas na pedra. E o silêncio do descampado, que nos constrange, quando por ali vamos, apesar da humilde presença da capelinha.

Fui lá, à romaria, a primeira vez, não deveria ter sete anos. Fui com meu pai. Andei quilómetros, como outros romeiros, desde a madrugada alta. Aprendia-se bem cedo a conhecer as estrelas e os caminhos da terra. E os cantares dos galos pela manhã e os passos esquivos da caça saltando.

Chegávamos pouco depois do nascer do sol. Havia já romeiros à porta da capelinha, algumas tendas, mordomos sentados na pequenina nave do templo distribuindo estampas, esmolas tilintando numa bandeja, muitas velas acesas, gente entrando e saindo, tanta gente que eu era pequeno e me perdia pelo meio.

Fiz a romaria com meu pai, três voltas à capela, com outros romeiros. Havia mulheres que andavam de joelhos. E um homem. Ou mais? Eram “promessas”. Mas eu não adivinhava ainda as dores dos homens. Só tinha pena da gente que rezava.

Mais tarde, conheci lá outras “promessas”, os quadrinhos pintados, os ex-votos. Olhava-os então demoradamente. As legendas contavam as histórias tristes dos homens e os milagres que, outra vez, lhes traziam a força de viver. Voltei lá já muitas vezes, só para os ver.

Depois, vinha a procissão. Andores e anjinhos. Pálio e mordomos de opa. O senhor padre. Música e foguetes. Tudo perfeito. Estava agora apinhado de gente o adro da capela. Por um tempo, era só tempo de rezar.

Vi um balão colorido, de papel, pensava eu, olhei-o por muito tempo, a subir. Nunca mais vi subir balões nas romarias. Lembrava-me desse balão quando, mais tarde, nas aulas de História, me contavam a história da Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão.

À volta da capela, já fora do adro, as pessoas estendiam merendas. Sentavam-se. Pão de trigo. Ovos. Fumeiro. Carne de aves. Tudo caseiro. E vinho, em pequenos garrafões empalhados, que se estendiam aos amigos de ocasião. Jeitos de ágape que tinha a merenda, em romaria!

Havia também as tendas pobres dos vendedores de bugigangas, brinquedos de pau e de lata, apitos e galos de barro e havia as bancas dos taberneiros, que traziam o vinho em ancoretas.

A música tocava pela tarde fora. Havia foguetes outra vez. Era a festa para as almas e para os corpos.

Os romeiros depois começavam a ir-se embora. Os de mais longe. Burritos ajaezados de luxo com colchas vermelhas feitas nas Arnas ou em Castainço, ou só com mantas de farrapos e o alforje da merenda. Lá seguiam a caminho dos pinhais. Transportavam crianças e mulheres.

Alguns homens levavam no chapéu, dobrado com elegância, o registo da Senhora. Haviam de colá-lo no frontal da sala, em casa, com massa de pão ou pregá-lo com brochas. Até que amarelecia do tempo e do fumo.

A vida continuava depois, com suas dores. E as promessas de voltar à Senhora da Cabeça.

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