O ESPANTALHO

Arte efémera na paisagem

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Na parede branca do meu quarto esteve pendurado, por muito tempo, o “espantalhinho” amoroso que a Isabel, uma velha amiga, me enviou de longe, memória de um tempo de trabalho comum. A ternura toda de um mundo de homens expressa num gesto, os braços abertos do espantalhinho e da amiga de ambos abraçando o mundo, onde os homens todos se contêm, irmãos, generosos e, enfim, pacíficos.

Encimando o tronco de uma ligeira árvore, mais mística do que real, o espantalhinho vestia uma blusa de pintinhas e umas calças azuis talhadas de feição e nas miniaturais roupagens trazia, pregados, remendinhos de florinhas e de azul.

Traçava, donairoso, um cachecol aos quadrados e suspendia do ombro um saquinho bordado, onde só guardava um papelinho escrito com um poema breve e lindo e uma conchinha apanhada à beira-mar numa viagem de menina.

O barrete vermelho cobria-lhe mal os cabelitos louros da palha e do sol e ele tinha, sob o olhar azul, grande e aberto, um sorriso feliz nos lábios vermelhos.

E eu revejo, assim, olhando o espantalhinho atrevido e terno, os espantalhos grandes que, na minha infância, eu via construir na aldeia, desde o fim da Primavera, quando as revoadas de aves desciam dos pinheirais para colher nos campos cultivados o alimento dos filhotes famintos.

Lembro-me, com simpatia, dos desajeitados bonecos de palha de centeio, que nasciam ao longo do fervor de uma tarde e que vestiam, com alguma elegância, um casacão muito velho, mal abotoado com dois botões partidos e umas calças largas, que a gente lhe atava à cinta com um cordel cheio de nós.

Os grandes, que construíam o espantalho, cobriam-lhe a cabeça com o toque familiar de um chapéu já roto, abriam-lhe os braços e levantavam-no num pau.

E ele ficava, sereno e atento, vigiando sobre a tarde o campo dourado do milho painço, as hortas com sementes amarelecendo, as figueiras de figos lampos, solitárias sobre os cômoros, os nabais semeados em Setembro nas terras húmidas das primeiras chuvas, as vinhas arredias com cheiros a moscatel.

Eram tão belos como os palhaços de circo os espantalhos da minha infância.

E os olhos dos meninos sabiam entender, no corpo de palha do espantalho mal agasalhado num casaco roto, que não ia durar-lhe o Inverno todo o bater de um coração vivo de menino e liam-lhe nos olhos que os adultos não sabiam modelar-lhe bem toda uma mansa e compassiva ternura. E sorriam-se para ele, apertavam-lhe as mãos, brincavam à roda, levavam-no aos ombros como se fosse um pequeno herói de brincadeira numa tarde de vitória.

Quando os campos, ao findar da tarde, ficavam vazios de meninos, o espantalho ficava triste, lá dentro, no peito.

Mas quando um menino, pela mão do pai, olhava para traz a última vez, via o espantalho que, de braços abertos, espantava as milheiras, acenando-lhe um gesto amigo com um sorriso gaiato que fazia dormir ao ingénuo menino um sono feliz.

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