Chega-nos, de muito longe, esta farsa carnavalesca, o celebrado Enterro do Rico Irmão que acontece no Touro, Vila Nova de Paiva, ainda que o atento e erudito monógrafo das Terras do Alto Paiva, Manuel Fonseca da Gama, não no-la descreva na sua Monografia, datada de 1940, deixando apenas, como vagos dizeres referentes ao amplo território que descreve, que Na noite de 3.ª feira de Carnaval ouviam-se muitos tiros de espingarda: era a matar o Entrudo; e algumas vezes fingiam o seu enterro, com carpideiras.
Na noite de terça-feira gorda, último dia do festivo Carnaval ou Entrudo, como vulgarmente se dizia, costuma realizar-se, actualmente, no Touro, pelas vinte e duas horas e trinta minutos, no Terreiro da Capela de Santo António, a habitual farsa carnavalesca que ali dá por nome de ENTERRO DO RICO IRMÃO. Cerimonial complexo, que inclui o julgamento e a condenação à morte, pela forca, de um antropomorfo, designado RICO IRMÃO – metafórica imagem que sobre si carrega os desvios da gente da aldeia ao longo de um ano – e a sarcástica leitura dos testamentos.
No adro da capela, sobre um elevado estrado ali construído, implanta-se a “forca”, engenhoso aparelho de suplício constituído por um elevado barrote, uma travessa travada com uma barra de reforço e a corda com um laço onde se suspenderá o Rico Irmão.
Numa tabuleta a inscrição em letras maiúsculas: FEZ TANTA MALDADE, ESTE DESGRAÇADO; POR ISSO AGORA VAI SER ENFORCADO.


Personagens deste auto: o réu, antropomorfo que ali chega num esquife e ao qual logo se coloca o laço; o juiz, o advogado de defesa, um bispo – às vezes, um padre – com suas vestes de paródia, o carrasco. Depois, os homens das lumieiras, as choradeiras ou carpideiras e a banda de música. E o povo, que é também personagem.
O auto inicia-se com a chegada do Rico Irmão, uma burlesca figura de antropomorfo de palha e trapo que quatro rapazes transportam num esquife, ao som de uma charanga. E logo se expõe, laço no pescoço, face ao povo que enche o adro, caindo sobre ele a suspeição de muitos crimes de que terá breve julgamento de paródia.
Habitualmente, é o juiz quem lê, num longo monólogo, a “Vida e Obra do Rico Irmão”, texto que se constitui como uma autobiografia da mítica personagem, que se nomeia a si própria com um qualquer nome de escárnio, Anastácio ou Tibúrcio, sem particular sentido.


Na representação da farsa carnavalesca, o Rico Irmão configura uma personagem simbólica que, agindo em nome individual, acaba por identificar-se como vítima de um conjunto de circunstâncias que não lhe permitiram obter êxito na vida, que uma má sina marcara desde o nascimento acontecido em ano funesto, no desamparo de uma cabana do monte, circunstâncias e gravames que, vencidos, o tornaram imune aos vexames que a vida lhe reservará.
Bateu à porta de rico ou pobre, da Junta de Freguesia, da Câmara Municipal. Ninguém o ajudou. Teve de roubar para se vestir e comer.
E o juiz, ao acabar de ler o texto, clama:
– Apresente-se o réu e a sua defesa, o advogado.
Tenta o advogado a defesa do réu, referindo a insignificância dos roubos que cometera apenas para comer e se vestir.
Mas, antes de lavrar a sentença, pergunta o juiz ao povo, tal como Pilatos em seu tempo:
– Perante estes crimes, que sentença lhe devemos dar?
– A morte! A morte! A morte! – clama o povo.
E o juiz manda cumprir a sentença:
– Enforque-se o réu e depois seu corpo seja queimado e as cinzas lançadas ao rio Covo. O rio que ali corre.
E é então que o carrasco, de rosto escondido na habitual máscara negra, corre o laço sobre o pescoço do Rico Irmão e o suspende, cravando-lhe, sem piedade, um punhal no coração.
Antes que o cortejo prossiga, outra vez o advogado intervém, declarando, agora, que o réu deixara testamento, cuja leitura deverá fazer-se.
– Que seja breve!… – autoriza o Juiz.
E advogado e juiz lêem de par-a-par as deixas de uma herança de paródia ali proclamada, cujos destinatários, nem sempre ali presentes, são figuras do lugar ou de sua vizinhança e ali se causticam, mercê de atitudes comportamentais que parece não terem obedecido, em rigor, a uma pretendida ortodoxia.
No final, o juiz dita:
– Siga o enterro!…




Armaram-se, entretanto, os portadores das gigantescas tochas – as lumieiras–, acendem a palha de que são feitas e ei-los na boca de um cortejo de pantomina presidido por um Bispo de fantasia, que lê vagos latins numa cartilha, logo seguido pelo corpo inerte do Rico Irmão transportado no esquife. Um povo em tardios lamentos, carpideiras cumprindo o ofício, o toque remansoso da charanga no couce do enterro, o longo caminho da Rua Principal até à Ponte do Rio Covo a cujas águas se entrega o corpo do Rico Irmão.
Sobre ele se projecta ainda o toco ainda aceso das lumieiras que a corrente lentamente arrastará, como se corpo fosse de mítico rei de um tempo já sem memória.
O povo, redimidos os males, alegra-se agora e regressa em festa ao Terreiro da Capela de Santo António, onde se realizará o segundo acto deste auto nocturno: a celebração dos “Casamentos Burlescos”, os Casamentos de Entrudo, outra pantomina que o povo do Touro vive intensamente.
