OS VELHOS NAVIOS E O SEU IMPREVISÍVEL DEVIR

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O porto de Tiro em 1914

Hoje vou tratar de navios, ainda que o poema de Flecker me pudesse levar a temas mais incómodos. A causa foi uma notícia sobre o possível destino do SS United States, transatlântico lançado em 1951 e que foi, não só por ter ganhado o célebre Blue Riband atribuído ao navio mais rápido na travessia do Atlântico, mas sobretudo pela sua excelente qualidade e traça, um símbolo do optimismo americano. Lembro um artigo na desaparecida revista Life que o descrevia, com um desdobrável que representava o perfil e o interior do paquete, folha que deve andar nalguma caixa menos aberta onde se guarda o passado.

Ora, esta jóia da construção naval, quando nos cais sem lodo de Nova Iorque se podia ver a fina flor dos navios de meados do século XX, vai terminar ao largo da costa de Okaloosa, na Flórida, destinado a tornar-se o maior recife artificial do mundo. Parece um fim triste para uma glória marítima, mas talvez seja desejável para todos os velhos navios – repousarem no mar, onde tantos e tantos outros os precederam desde que os homens foram divididos em três categorias: os vivos, os mortos e os que andam no mar. De qualquer forma, é preferível a vê-los enferrujar e ser despojados do que os ornamentou (Fig. 2), como uma bela senhora reduzida a usar vestidos puídos depois de perder as jóias. Esta imagem ocorreu-me porque recordei uma bela foto do malfadado e polémico Wilhelm Gustloff fotografado à noite em Hamburgo, iluminado, que alguém intitulou Lady in the Night, navio lembrado por Günter Grass na novela Im Krebsgang.

SS United States acostado em Filadélfia em 2017

Esta fatalidade que atinge, em resultado de um ciclo que podemos considerar biológico, os navios tornados inúteis, levou à morte lenta do belo France, depois de várias peripécias antes de arribar ao inferno dos velhos navios, em Alang, na Índia, onde os espera uma rústica demolição, motivou reacções em França, sintetizadas na canção de Michel Sardou cujo refrão reflectia o sentimento de muitos franceses: Ne m’appelez plus jamais “France”/ La France elle m’a laissé tomber. Conservar navios imobilizados, como tentam as fundações ou associações que procuram preservá-los com uma crónica falta de meios, é difícil e abundam os casos de falhanço ou insolvência, assim como de tardias reconstruções totais, como a do Calypso de Cousteau.

Na verdade, os navios são grandes objectos utilitários, máquinas de navegar, sujeitas ao desgaste natural do uso e da idade, tanto como à evolução tecnológica e da sociedade. Mas acontece concebê-los dotados de vida própria, mesmo de identidade, reflexo da intensa relação da Humanidade com o simbólico e com o seu quadro de vida. É por isso que a perda de um navio se reveste sempre de tristeza, oposta à festa de um lançamento. Não faltam páginas, e não apenas na literatura, onde este sentimento é francamente exposto. Talvez o facto de, nalgumas línguas, o substantivo navio ser do género feminino ajude a compreender esta reacção complexa.

Não me ocupo hoje de navios muito antigos, mas daqueles que não poucas vezes fazem parte de memórias vividas, mesmo que de forma indirecta. O primeiro navio a que subi, sem considerar os velhos ferryboats que faziam a ligação entre a estação de Sul e Sueste e o Barreiro, como o Évora, agora transmutado em navio turístico, foi o modesto Lagoa, em 1953, que recordo ainda em pormenor. Vivências diferentes foram as viagens nos nossos belos paquetes Vera Cruz e Príncipe Perfeito, neste em viagem civil, já no ocaso da era dos transatlânticos, não totalmente alheia ao fim dos impérios coloniais europeus. Como outros, foram abatidos e acabaram demolidos sem recurso, oferecendo desta forma algum ganho. Não gostaríamos antes de os saber afundados algures do que esquartejados por sucateiros?

NT Príncipe Perfeito em vias de demolição, em 2001

O negócio com os navios abatidos ou afundados não se limita a este triste cenário, mesmo não lembrando aqui a exploração pouco ética de naufrágios famosos, como o Titanic, em parte alimentado pelo gosto mórbido do público por tragédias e que, ainda há pouco, causou mais uma. Pior situação é a de navios afundados nos combates das guerras do século passado, em particular em águas asiáticas, sistematicamente espoliados de tudo o que tenha algum valor, a ponto de quase desaparecerem apesar de considerados como sepulturas de guerra, teoricamente protegidas por lei internacional.

Recuperar um navio antigo pode ser bastante caro e mesmo insustentável. Em casos especiais, este problema não se coloca, como sucede com o Vasa, na Suécia, operação apoiada por fundos regulares, em parte estatais, como o foram os navios romanos do Lago Nemi, cuja destruição em 1944 ainda constitui motivo de polémica. A estes êxitos da arqueologia subaquática podemos acrescentar alguns navios que persistem flutuando, como o norte-americano USS Constitution. A reconstruída fragata D. Fernando e Glória poderia integrar este grupo, não fosse o incêndio de 1963 que praticamente a destruiu. Os navios que se conservaram mais ou menos intactos distinguem-se dos navios naufragados, que podem ser considerados cápsulas do tempo, pois este parou no dia do naufrágio. Por isso, os caçadores de tesouros que ousam intitular-se arqueólogos os desejam tanto!

USS Constitution navegando em 2012

Os navios mantidos pela sua relação com um acontecimento, época ou vivência, podem ser classificados antes como lugares de memória, caso do Gil Eanes, símbolo da saga do bacalhau, felizmente preservado como o Creoula e outros. Recordo o Rickmer Rickmers, navio de vários nomes que foi o nosso NRP Sagres II, hoje exemplar navio-museu em Hamburgo (Fig. 5). Do paquete Vera Cruz resta-me um baralho de cartas e um relógio que nele adquiri em 1965 e ainda uso; do Príncipe Perfeito só me restam fotografias, ementas e a nostalgia do que foi e já não é.

Rickmer Rickmers acostado em Hamburgo

           

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