ASSASSINATOS E SUICÍDIOS

No quotidiano clima envolvente de guerra e de violência, quiçá se justifique a pergunta: valerá a pena cantar? O drama «O Trovador» do espanhol António García Gutiérrez (1813-1884), perlado de paixões românticas, manterá actualidade? As perguntas vêm a propósito de o compositor Giuseppe Verdi ter agarrado nesse drama, estreado em 1836, para fazer dele o tema da sua ópera homónima, que viria a ser estreada, em Roma, em 1853, e que, de certo modo, acabou por tornar mais conhecido García Gutiérrez, além de eficazmente contribuir para mais imortalizar o génio de Verdi.

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O enredo tropeça em bruxarias, amores proibidos, traições, punhais que matam, fogueiras de mortal justiça, guerras intestinas… O trovador seria, em princípio, aquele que contaria a história (verdadeira ou inventada) e logo seu ofício nos levaria para cantigas de amor, escárnio e maldizer, secretos ambientes palacianos de intrigas. E por aí nos ficamos.

cena da declaração de amor

Afinal, porém, num espectáculo de ópera, não será tanto o tema que interessa, mas o modo como o compositor soube, através das melodias, pôr na boca das personagens os sentimentos que elas deviam expressar. Está em cena o actor e o cantor.

Numa produção do Grupo Chiado, que tomou a peito a divulgação da ópera entre nós, «O Trovador», de Verdi, subiu ao palco do Salão Preto e Prata do Casino Estoril no domingo, 13.

A Hesperian Symphony Orchestra foi dirigida pelo maestro Antonio Ariza Momblant e cumpriu a rigor o seu papel de, mui discretamente, ir sublinhando os cantares, quase não se deu por ela, como é de lei. A cenografia esteve a cargo de Alejandro Contreras. Para além do elenco que figurou como coro, dir-se-á que María Ruiz incarnou o sedutor papel de Leonora; Eduardo Sandoval esteve bem na pele do romântico Manrico; foi feroz e altivo Manuel Más, na roupagem do Conde di Luna; María Luisa Corbacho compôs bem, inclusive pela sua imponente estatura, o papel da bruxa Azucena; Antonio Alonso foi Ferrando.

cena em que a amada separa os dois amantes

Os quatro actos originais foram, de certo modo, condensados em dois, com o habitual intervalo a permitir a descontracção. E se o guarda-roupa nos levou para o ‘enroupado’ século XIX, louve-se a sobriedade do cenário: em fundo, uma grande cruz latina descaída foi presença constante, envolta em decoração que, nas imagens de guerra em que vivemos, nos incitaram (porventura mal) a ver por detrás edifícios destruídos; mas também esteve envolvida em frondes serenas, em passageiras nuvens, na imagem de um ícone bizantino… Fantasia de espectador ou intenção de cenógrafo, que, a pretexto de crueldades antigas, nos quis recordar as crueldades de agora.

Uma nota final que muito gostaria de ser doravante tida em consideração. E escrevo «doravante», porque o mesmo lapso (perdoar-se-me-á o termo) vi em «Nabucodonosor». Como é hábito, um painel vai mostrando as falas e explicando as cenas. Sucede, porém, que – se aceitamos (embora nos custe) que essas legendas estejam em português do Brasil – abundam os erros de tradução, a troca de géneros (a personagem é uma mulher e refere-se-lhe no masculino), as gralhas ortográficas… É pena – e estou convicto de que, de futuro, o Grupo Chiado não confiará no ‘google’ e pedirá a colaboração de um tradutor competente.

Que essa cruzada do Grupo Chiado em prol da ópera e da música em geral merece o maior aplauso isso, todavia, não sofre a mínima contestação

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