A VACA SAGRADA

Era um Congresso em Goa. Mais de meia dúzia de participantes de vários pontos da Europa e do Brasil. A R., a morar aqui perto, arranjava-me as rupias, dava-me o contacto dos tios em Margão e garantia que em Pangim podia deslocar-me à vontade. As sombras do anoitecer não costumavam atacar. A gente era pacata e delicada. Só recomendava que recolhesse cedo e que estivesse sempre acompanhada dos colegas.

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Em Bombaim, onde ficaríamos uma noite, seria diferente. Uma Metrópole de profundos contrastes que podia engolir-me num abrir e fechar de olhos.

Notava-o logo no aeroporto, onde nos encontrávamos todos após intervalos de espera. Depois na tomada de “táxi”, dois, no percurso até ao hotel. Naquele trânsito caótico sem regras nem faixas de rodagem, só não morria de medo na carripana atulhada, porque tapava os olhos e entregava-me à divindade, nem sei qual.

Entre ziguezagues de perícia extrema, a certa altura notava dois carros em sentido contrário, direitos ao nosso como mísseis telecomandados. Cerrava os olhos para não ver a morte certa. A minha naquele fim de tarde, espalmada como um bife batido na tábua.

Mas não…Abria-os quando ouvia o suspiro de alívio dos “vizinhos” e o veículo voava pela cidade fintando os outros como num jogo de computador. Chegávamos ao hotel ilesos.

Já preparada para um banho, a S. vinha avisar-me que íamos sair para jantar, o banho ficaria para depois. Na planta inferior havia reunião com decisões já tomadas. Cada um, integrado no grupo que entendesse, ia dar umas voltas pelo quarteirão, enquanto o restaurante escolhido não abrisse.

Marcávamos o ponto de reunião para o regresso, repetíamos as coordenadas para memorizar os caminhos. Percebíamos a formação de três grupos para destinos diferentes. Eu escolhia ir com a S., louca por visitar uma Feira nocturna ao ar livre que perdera durante anos a viver em Londres. Conhecia a cidade como a palma da mão, ao contrário de mim que nunca lá tinha estado. Ainda aturdida com as primeiras impressões, tanto ia para uma Feira, como para um Museu, mas tinha mais identidade com ela.

Atravessávamos a avenida principal, nem sei como, por entre veículos que apitavam a cada movimento, depois ruas perpendiculares, becos, até alcançarmos a Feira distribuída por um largo cheio de gente com coloridos trajes.

Bem adiantada à minha frente, ela percorria as bancas com olhos de lince, à procura de produtos exóticos para trazer de presente. Diante de tanta destreza, eu nem me atrevia a olhar para baixo para uma apreciação minuciosa, não fosse aquela louca diluir-se num mar de criaturas como eu nunca vira, só diferentes pela cor da vestimenta.

Mas acontecia. Fascinada por uns colares originais, quando me reerguia ela devia ter passado para outra banca ao lado, atrás, mais à frente, sei lá…porque nunca mais descobria aquela alma, ainda que vestida à europeia.

Muita angústia nos minutos seguintes à procura da cabeça negra de longos cabelos escorridos. Enquanto a procurava a ela, mil olhos masculinos já tinham captado o meu desnorte. Se eu precisava de ajuda…se queria ser levada a algum lugar…com quem estava… Seria tudo por bem, mas eu é que estava mal e não podia pensar no melhor.

Inventava a história do marido quase a chegar, daquele lado…E apontava a saída da rua para uma perpendicular, o caminho que ia dar à longa avenida, julgava eu, com esperança de ter fixado bem os pormenores referenciais.

Saía dali amaldiçoando a S. Bem sabia que eu desconhecia aquela Babel e os seus perigos. Sempre em passo de corrida, avistava um grande armazém de roupa ainda cheio de gente. Entrava. Comprava um vestido comprido de algodão, uma écharpe do mesmo tecido, tão larga que daria para fazer outro.

Olhava pela porta, pela janela. Não via nada de suspeito. Pagava, colocava a écharpe pela cabeça atrás de um expositor, saía dali a correr. Com o coração aos pulos, percebia que estava no caminho certo, mas faltava atravessar certa avenida, a principal…

Carros, táxis, carripanas, buzinadelas, tudo se mantinha na mesma. Colocava um pé à frente já na estrada. Uma travagem brusca quase me parava o coração. Recuava, tentava de novo. Mais travagens e buzinas. Alarido. Não ia alcançar o outro lado, mormente com a ideia do bife espalmado na cabeça.

Bife…vaca. A mais linda que já vira, pelo menos em muitos meses, bamboleava-se à frente dos carros que se desviavam. Pelagem clara, bem redonda de formas, pachorrenta. Com os dedos agitados como leques, pensava poder atraí-la para mais perto. Ninguém ia dar por mim. Mas dava ela – milagre – a desviar-se na minha direcção como se pressentisse um desesperado apelo. Estava a menos de dois metros. Era o momento de ousar a corrida louca, ignorando o aumento de volume das buzinas e da gritaria.

Colava-me ao lombo quente do animal, tangendo-o com doçura. Quer dizer, empurrava a vaca com o cotovelo para controlar a sua natural tendência de avançar a direito. Forçava o desvio na direcção do passeio oposto, com filas de barracas e multidões de volta dos produtos expostos.

Ela entendia, estacionando à beira do lancil. Dali não ia sair. Fazia-lhe uma festa, agradecida. Aquela vaca também era sagrada para mim. Voltava a empurrá-la, agora pelo traseiro, agora em sentido contrário, para que atingisse o fluxo da avenida com a benevolência dos veículos. Sem pressas retomava a marcha, para restabelecimento do meu ritmo cardíaco.

O mar de gente continuava na ondulação ritmada da noite, uns em trânsito automóvel, de carroça, de lambreta, outros olhando as barracas na linha mais recuada dos passeios, como naquele em que me encontrava. Na última, ao fundo do passeio, um idoso de barba e turbante olhava-me com insistência. Desconfiado…curioso? Se precisava de alguma coisa.

Tirava a écharpe da cabeça, contava-lhe a verdade entre palavras e gestos subtis –  “combinámos que o seu stand seria o local de espera até às…”. Mandava-me entrar. Sugeria que sentada podia avistar a rua em sossego. Que não, respondia eu. De fora via melhor os amigos a contornarem o passeio para irmos direitos ao restaurante.

Nunca vira cavalheiro mais arguto e delicado. Baixava-se, pegava num banco de madeira, estendia-mo para eu me sentar à frente da barraca. Comovida fazia-lhe a vontade. Esperava ali protegida, sem ser molestada com perguntas, nem quando me levantava à hora de partir e lhe devolvia o banco. Estendia-lhe a mão…fazia-me uma vénia.

O resto já pouco interessa. À hora combinada estávamos quase todos no restaurante a ocupar o lugar à mesa. A S. era a última a chegar, com um sorriso provocante, cheia de bugigangas. Só me perguntava se tinha comprado muita coisa!!! Devem imaginar a resposta que me apetecia dar-lhe…Mostrava o vestido, o colar de metal com um cantil pendente. Dava um grito: “Esse colar é um amuleto de sorte. O cantil usava-se para colocar veneno…a tampa tem um espigão que mergulhava no liquido e bastava picar quem atacasse”.

Soubera eu…pelo menos uma picadela devia ter-lhe dado.

A vaca, essa, salvava-me no caos de Bombaim, a cidade com o bairro de lata maior do mundo, conforme me dizia o académico goês a viver em Lisboa, meu colega de lugar no avião de Pangim até à cidade grande.

Cidade de tanta miséria, com pessoas que mereciam o Paraíso. Talvez lhes chegasse o que tinham na precária estabilidade dos dias.

2 COMENTÁRIOS

  1. Adorei ler esta passagem por Bombaim cidade que conheço razoavelmente e que choca qualquer ocidental pelos muitos contrastes.
    A cronista Helena Ventura Pereira devia aparecer mais vezes para não se quebrar o vinculo com o leitor que se habituou ao seu estilo pois vejo que até ela está a sofrer da apatia que se vai espalhando por aqui e por todos os meios de comunicação em relação a todas as formas de escrita.
    Parabéns por esta crónica diferente que não deixa de marcar as desigualdades sociais. Os meus cumprimentos.

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