Tudo o que importa saber acerca deste Gabinete Português de Leitura da Bahia– que é um dos 28 gabinetes portugueses de leitura criados pelo Brasil desde 1830 (o 1º foi em Porto Alegre) e até 1916 (o de Viçosa do Ceará) – está consignado no livro de Regina Anacleto, acabado de publicar (2024) pela Quarteto Editora*, de Salvador (Bahia). 166 páginas, em formato A4, mui significativo acervo fotográfico a cores no final. Edição financiada pelo Arquiteto Abel Travassos, que na ficha técnica vem apresentado como «português, ex-Presidente da Casa e abnegado sócio».
Regina Anacleto, recorde-se, especializou-se no estudo das arquitecturas neomedievais, designadamente a neomanuelina, tendo analisado miudamente, na sua tese de doutoramento (Arquitectura neomedieval portuguesa. 1780-1924, defendida em 1992), entre muitos exemplares portugueses desse tipo de arquitectura, o Palácio Nacional da Pena (em Sintra) e o Palácio da Duquesa (em Cascais). Manteve sempre grande relação com o Brasil e publicou, em 2010, uma primeira monografia deste teor, intitulada Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos.
Não admira, por isso, que, neste livro, depois de referir as circunstâncias em que os gabinetes de leitura foram surgindo no Brasil, se debruce sobre esse tema das arquitecturas ‘revivalistas’ (perdoe-se-me o uso deste adjectivo), mostrando o interesse que devem despertar edifícios como o referido Paço da Pena, o Mosteiro dos Jerónimos, a estação central do Rossio, o edifício dos Paços do Concelho de Sintra. Uma palavra especial é dada à «reinvenção cenográfica da arquitectura manuelina», tanto no que designa «o paraíso romântico do Buçaco» como na «magia romântica da Quinta da Regaleira».
Essa moda também seduziu o Brasil – recorde-se que esse século XIX correspondeu à grande imigração portuguesa (os «brasileiros de torna-viagem» de que tanto eco há na literatura da época) – e é nesse movimento que se insere a criação deste gabinete de leitura em Salvador da Baía.
Lê-se na acta fundacional:
«Os fins da presente sociedade consistem na aquisição do maior número de obras de reconhecida utilidade escritas nos idiomas Português e Francês e mais aquelas que posteriormente se julgarem mais precisas, assim como os principais jornais publicados em Portugal e no Brasil» (p. 137).
Anote-se, para que conste: em Português e em Francês!
Todo o capítulo 6 é dedicado a dar conta das principais efemérides que constam da história do Gabinete, história que é depois referida em sequência cronológica, desde 1830 a 1947 (p. 124-137).
Permita-se-me que releve dois ou três desses factos – pelo especial significado que se lhes pode atribuir.
Assim, fica-se a saber que, por iniciativa da direcção do Gabinete, se promoveu, em 1878, uma subscrição «para fazer face às despesas com as exéquias a Alexandre Herculano». Quem diria?
Também se festejou em Salvador, no ano de 1880, o tricentenário da morte de Camões. No ano seguinte, a direcção dos festejos comemorativos ofereceu ao Gabinete o busto que, eventualmente, merecera lugar de honra no decorrer das cerimónias.
A patriótica indignação contra a nossa «mais velha aliada», a Inglaterra, que, traiçoeiramente, nos lançou, em 1890, o Ultimatum, também se alargou a terras brasileiras, onde se abriu uma subscrição «a fim de angariar fundos destinados a comprar unidades navais para equipar a marinha de guerra portuguesa» (p. 131).
Com os fundos obtidos se construiu, no Arsenal da Ribeira das Naus, em Lisboa, a canhoneira «Pátria», entregue à armada portuguesa em 1903 e que, em 1905, demandou os principais portos brasileiros para manifestar a gratidão pelo movimento patriótico espontaneamente gerado no Brasil. Na circunstância, a 9 de Setembro, os oficiais da canhoneira foram recebidos em sessão solene, tendo a direcção do Gabinete entregado ao comandante, Capitão Tenente António Alfredo da Silva Ribeiro, o diploma de sócio honorário. O ensejo foi igualmente aproveitado para se entronizar «a maqueta do monumento a Pedro Álvares Cabral, da autoria de Costa Mota, que havia sido adquirida por um grupo de sócios num leilão da alfândega e oferecida ao Gabinete» (p. 133-134).
Tudo isto para mostrar que, afinal, este Gabinete de Leitura da Bahia – como, de resto, os demais – não constituiu mero repositório de publicações de leitura presencial ou domiciliária; em seu redor – como no dos demais – manteve-se e alimentou-se o espírito português. Uma obra arquitectónica, sim, mas a arquitectura é, aqui, o invólucro exterior de uma missão com objectivos culturais bem definidos e muito maiores.
Está de parabéns a Autora, por mais esta obra com que nos quis brindar.
* ISBN: 978-65-87365-68-8