MELANCIAS

Muito antes dos relatos de animais de grande porte a fazerem praia este Verão, já as melancias nadavam nas águas de Porto Covo.

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A Natureza é de toda a vida animal, vegetal e mineral, mas só os animais não humanos pareciam condenados ao confinamento eterno nas suas reservas cada vez mais exíguas, pela invasão do maior predador.

Mas eis senão quando uma certa pandemia, que ainda mata mas parece já não assustar, invertia os termos da equação do medo e confinava os homens aos poucos metros quadrados dos seus apartamentos. E então percebiam o sinónimo de “animal enjaulado”, convertendo-se alguns em verdadeiras feras.

É por isso que a prisão, sem terapia ocupacional no exterior, dificilmente se tornará um modo de reformar…

Certo é que os animais antes enjaulados prescrutavam a Natureza disponível, primeiro sob a luz velada da madrugada, depois o desimpedimento das estradas terrestres, marítimas e fluviais em plena luz do dia. Os humanos resolviam fazer férias? Ali estava a real possibilidade de passarem a viajar em manada, ou aos pares, para além dos seus limites territoriais. E ficava-lhes o gosto, porque a liberdade é um bem inestimável.

Este ano os amigos que iam a banhos encontravam outros veraneantes menos habituais e não tinham outro remédio senão partilhar as águas e o areal. Nunca a paisagem portuguesa se tornava mais castiça com avestruzes fora das reserva, javalis a mergulharem os focinhos na limpidez das águas da Arrábida, golfinhos de bicos encostados ao paredão dos limites fluviais e marítimos, para interagirem com os humanos.

Castiço, sim, mas talvez não mais do que naquele ano em que as melancias nadavam…

Um grupo de pais e mães, elas muito galinhas, deixava os seus adolescentes fazerem um primeiro ensaio de liberdade em Porto Covo, com um orçamento que, bem gerido, daria para a semana em que se propunham afastar da “civilização” parental.

Eram alguns oito rapazes e raparigas com idades entre os 15 e os 17. Começavam elas por gerir o orçamento e ordenar as refeições, mas a gula de alguns lanches no único café num raio alargado, estragava a exigente relação economias–necessidades e ainda a semana ia a meio, já havia muita fome naquelas tendas humildes.

Medidas radicais, impunha a reunião de grupo. Até o pão era substituído pelas bolachas de água e sal, com muitas calorias disfarçadas, levadas das despensas familiares. Acompanhavam as latas de atum, também de formecimento caseiro, a todas as refeições. A fruta era dos pomares à volta. Só pesava a que não vinha deglutida e armazenada no estômago.

Quando um dia, desmoralizados, descobriam que não faziam praia em busca da sobrevivência, reparavam por acaso nos caixotes de melancias à beira da estrada. O rosto amável do senhor…Amável, inspirava confiança na escolha. Afinal passavam a ser os seus melhores clientes, cada um com uma melancia debaixo do braço até ao lugar cativo no areal. E amontoadas junto às rochas que lhes guardavam os pertences, lá iam gozar as férias em desafios de jogos e diferentes tipos de natação.

Esqueciam muita coisa importante, a hora da refeição, jamais. Sentados, ou de cócoras, à volta  da “mesa”, deleitavam-se com as bolachas lambuzadas com atum, finalizando com doses maciças de melancia que o corpo já rejeitava. Estavam hidratados, menos mal. Também não corriam o risco de morrer à fome. Ainda havia reserva de conservas, bolachas e biscoitos, mas torciam a orelha por se negarem a levar de casa outras provisões diferentes.

Compreendia-se. Não conduziam, as mochilas pesavam toneladas com pouco mais do que o essencial, mas certa manhã chegavam à conclusão de que a fome começava a pesar mais. Quem ganhava, ou perdia, era o senhor Amável. Ganhava porque sempre vendia uns quilos de fruta. Perdia porque ao fim de três dias já se lhe partia o coração ver os miúdos a contarem os cêntimos, para conseguirem umas três melancias que dividissem por todos.

Quais pobres de mão estendida, mostravam-lhe as moedas que ainda tinham. E insistiam tanto no olhar pesaroso, que o vendedor se comovia quase até às lágrimas e  condescendia: “pronto, levem-nas todas e vejam se não passam fome”.

E eles carregavam as melancias até à praia, uma debaixo de cada braço como formigas previdentes, depositando-as no lugar habitual, junto às rochas onde deixavam as mochilas.

Então sim, entregavam-se aos banhos, à alegria das brincadeiras, felizes por terem o que comer, julgavam eles…

Quanto terminavam o último jogo desse dia e voltavam ao lugar das mochilas, as melancias tinham desaparecido. Um deles, de mão a fazer de pala, via umas cabeças na água, muito ao longe, Atlântico fora: “A maré subiu e levou-as…”, gritava. Nunca tinham descoberto que as melancias também gostavam de nadar. Como rebolavam bem ao sabor das vagas!

E lá se atiravam ao mar novamente para irem salvar a refeição, que o tempo não era de vacas gordas. Chegavam à praia cansados, mas nem uma melancia perdiam. Depois era só tirar das mochilas os canivetes afiados, as bolachas e as conservas e comerem até não conseguir mais. Uma dose mortífera. Chegados perto das tendas, a desgraça acontecia…

Lavados, mudados por dentro e por fora, vinham para a tenda maior fazer a conferência do dia. Só uma preocupação: e o dinheiro para o transporte de volta a casa? Guardado pela mais nova num frasco de café solúvel: mesmo à conta. E decidiam vir embora. Aquilo – dormir mal, comer pior, estar longe dos insuportáveis dos pais – perdera a piada toda.

Chegavam morenos, só pele e osso, metade do que tinham sido. E pela troca de impressões das mães-galinha comovidas, a frase era igual em casa de cada um: “Mãe, quero sopa”!

4 COMENTÁRIOS

  1. Que delícia! Que crónica esta!
    Como nos leva a rever peripécias daqueles tempos heróicos pelos quais todos passámos, de uma ou outra forma.

    Lembrou-me a história de um outro amigo, menos afortunado, em situação idêntica. No caso dele e seus amigos, a magnanimidade do proprietário pôs-lhes o melancial à disposição. Ou seria meloal. A certa altura sentiam que estavam a abusar da boa vontade e contiveram-se. Não contaram foi com a estratégia do mais expedito para identificar a melhor fruta e que passou por ir “calando”, ou tirando amostras, peça a peça. Escusado será dizer que, em pouco tempo, toda a produção estava imprópria, até para os animais.

    As melancias a nadar, muito, muito divertido.

  2. Magnífico texto que nos cativa do princípio ao fim.
    Tão bem descrita esta primeira tentativa de independência dos miúdos.
    As notas de humor ainda tornam o texto mais rico.
    Assim ” se aprende a coner sopa”
    Gostei muito.

  3. Quando era miúdo, 9 ou 10, 11 anos, vivi numa zona muito perto de Lisboa, mas ainda campestre. Nas férias, fins-de-semana, gostava de ir com o cão passear para os montes, até ver o Tejo lá longe. Levava um melão e uma faca, uma garrafa de água, passava o dia todo nessa caminhada, dividia o melão com o cão.

  4. Mais espartano não podia ser, Carlos. Não tenho dúvida que era dos que pediam sopa à mãe, quando chegava a casa. O cão, o cão…o que não faz um animal pelo seu dono! Estavam os dois elegantes, calculo.
    Em relação à crónica não podia contar todas as peripécias, mas já agora…
    No primeiro dia, tempo de vacas gordas, uma das raparigas fazia feijoada: umas latas de feijão para dentro do único tacho, umas latas de carnes, outra de salsichas cortadas. E depois de tudo aquilo ser mexido com colher de pau, o tacho era colocado no cimo da rocha para apanhar calor.
    Ficava à temperatura ideal. No fim do banho era só dividir pelos pratos de plástico rígido, laváveis e deleitarem-se.
    Mas…havia um que era mais molengão para acordar, para caminhar, para sair da água. Quando saboreavam o manjar dos deuses e o viam aproximar da praia, lembravam-se que o tacho estava vazio e não havia dose para ele.
    Então à pressa, antes que ele notasse, rapavam os restos dos pratos deles (7) para o oitavo prato para fazer um montinho. E com a maior lata perguntavam: “está bom”? “está uma delícia” – dizia ele.
    Nem dava pelos olhares dos sete, que lamentavam em silêncio abdicarem da migalha, nem por que repetiam tantas vezes, quando iam almoçar juntos mais tarde: “está um delícia”.
    Até hoje não sabe. Espero que não leia este comentário.

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