PEDRAS E SONHOS ANTIGOS

É agradável pertencer a uma elite. É duro ganhar esse direito. Pertencer a uma elite é ter a admiração alheia, o respeito, a adulação, a inveja, o despeito, o ódio, o desprezo, mas também a ternura… A ternura de uns olhos maravilhosos, a ternura de uns cabelos sedosos de adolescente, dos sonhos tépidos das adolescentes, dos seios das adolescentes…

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As ilusões são ternas. Ternas e gratuitas. A ilusão de hoje foi uma longa e cansativa corrida através da cidade. O filme vai terminar. As ruínas e a jovem loira persistirão durante dias, meses, talvez, como uma saudade do que nunca existiu.  Mas as primeiras impor-se-ão. O templo de Apolo… Pedras, colunas truncadas, dispersas, humilhadas, restos de um ideal de beleza, erguidas pelo respeito humano, testemunhas para sempre emudecidas desse mesmo respeito. O templo de Apolo, habitação de gatos selvagens … Onde os cânticos e a estrofes melodiosas dos poetas foram substituídas pelo miar áspero e selvagem dos gatos de Creta… Há sempre gatos no futuro, onde se não é digno do presente.   

Mas será o presente e o futuro dessas pedras mais triste do que o nosso? Que restará da doce e romântica jovem do filme, preocupada em como pentear os seus longos cabelos loiros, em como vestir o seu corpo de seios apenas esboçados quando, daqui a cem, duzentos anos, os gatos de Creta continuarem a miar por entre as pedras derruídas? Estarão elas mortas, por estarem deslocadas, quebradas, gastas e polidas, polidas pelo vento, pelo pó, pela água, pela História?

A História… Grande desfile de seres vindos do desconhecido para logo nele desaparecerem após uma meteórica passagem pelo tempo. Gerações e gerações de homens e gatos suceder-se-ão. Os primeiros mudarão as ideias, as fronteiras, julgar-se-ão, a si próprios, superiores aos que os antecederam, criarão e destruirão, arrastarão e serão arrastados pelo que criarem ou destruírem no capítulo que lhes compete escrever no livro da vida. E considerarão sempre prólogo os que vieram antes. E o seu orgulho será tão grande e tão cego que se considerarão os eleitos, sempre e sempre, ao longo do tempo. Farão, mesmo, rasuras nos capítulos anteriores. E interpolações. Os segundos continuarão felinos, iguais, sempre iguais, nada acrescentando aos seus miados até que um dia os primeiros os aniquilem.

Mas as ruínas persistirão. Só elas manterão a sua identidade, a sua grandeza, só elas existirão no tempo, imperturbáveis na sua insensibilidade de mármores frios. A pureza da pedra que foi, é, e será, não pode desaparecer. Elas são as verdadeiras testemunhas do Homem. Este é impotente contra elas. Não pode deter-se no tempo, não pode deter o tempo. Esse é um direito que só assiste às velhas pedras que os homens, um dia, trabalharam e colocaram de forma a materializar um ideal desde o primeiro momento condenado a desaparecer. Quem recorda hoje esses homens? Quem presta hoje culto a Apolo?

Templo de Apolo em Pompeia, Itália

Mas as pedras lá estão. Lá estão para gritar à estupidez daquele que nada pode contra o tempo, que outros se lhe seguirão, ao longo dos séculos, e, principalmente, que não pode arrogar-se o direito de proclamar como definitiva a sua cultura, definitivas as suas ideia, definitivos os seus mitos, de lhe lembrar que não lhe compete realizar a História, mas apenas figurar nela. Essa é a grande lição das ruínas. Só nelas pode continuar a existir a ideia que abandonou o Homem ou por ele foi suprimida. Só assim não será inútil progredir.

Mas o filme terminou. Ultimamente deixam-me nervoso, apreensivo, desejoso de mais qualquer coisa indefinida e inconcretizável. A tarde está prestes a extinguir-se, entre claxons de automóveis e luzes de néon que preludiam a noite. É o anoitecer quase inexistente de uma grande cidade, suprimido pelos homens na sua ânsia de se sobrepor à natureza. São 20 horas e 30 minutos quando entro no café. Está cheio, ou quase. A hora, que precede jantares e antecede diversões convida ao prazer simples da bebida fumegante e agradável no seu amargo adocicado. Pouco me demoro.

Estátua de Apolo, Museu do Louvre, Paris

Em breve estou de novo na rua, onde a tarde, estertorante, quase noite, nos poderá lembrar que há um dia a menos na nossa conta. Que ficamos, talvez, a dever um dia a nós próprios, e porque não, também aos outros. Estou só e sinto-me só. O café excitou-me. Estou mais agitado e tenho consciência de que é assim. É nessa altura que algo de maravilhoso vai suceder. Era uma rapariga alta, esguia, morena, cabelos caídos, olhos escuros, uns olhos doces, sorridentes, ternos – Oh sim! – ternos. Vinha correndo, saltitando no seu saia-casaco de xadrez. Sorria. Toda ela sorria e prometia ternura, uma ternura toda feita de calma, plena de promessas, tépida. Olhei-a bem nos olhos, devo tê-la olhado de um modo estranho, como devem olhar os que procuram afecto, amor. Olhou-me também. Sorrimos.

Até mim veio uma sensação enorme de alegria, de satisfação, de calma. Voltámo-nos e os dois continuámos a sorrir, ela agora num sorriso aberto, franco, maravilhosamente belo. Desapareceu sempre correndo e sorrindo, para o lado do Rossio. Eu segui para os Restauradores. E, de repente senti-me mais triste, mais só, mais agitado. Durante segundos estivéramos unidos, compartilhando a mesma sensação, alheios a problemas, inibições, aos ruídos que a grande cidade lançava sobre nós, contra nós. Libertos por um sorriso, um simples sorriso. Mas a cidade logo nos absorveu e ela não é mais, como eu para ela, uma pessoa desconhecida entre um milhão de pessoas desconhecidas. Não sei se ela ainda se recordará de mim neste momento. Eu, estou certo, não a esquecerei tão cedo.

Porque o que houve nos nossos sorrisos e olhares é a única coisa superior à força estática das ruínas, a única nelas não existentes – o Amor.      

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