Habituei-me a cruzar com ele desde os anos 60. Na rua, no comboio, em inauguração de exposições… Um encontro sempre de algazarra e pretexto sempre para me mostrar e oferecer a última publicação das suas Edições Mic.
Quando, por desinteligência com a direcção do Dramático de Cascais, a equipa que fazia o jornal A Nossa Terra, o órgão do clube, se demitiu, em 1963, Fernando Grade ficou e assumiu funções de chefe da redacção, sob direcção de Joaquim Baraona. Aí o fui apanhar e se estreitaram as cumplicidades. Sim, porque com o Grade tinha de haver cumplicidades!
Sempre primou por um certo ar desleixado no vestir, um sobretudo coçado, a imprescindível boina basca preta e, como muito bem escreveu Ruy Ventura no Facebook, aquela vontade perene de ir às inaugurações onde adregasse haver comes-e-bebes, para poupar em refeições, porque vida de poeta, por mais que se desunhe a propagandear-se e a vender poemas, sempre está às portas duma barriga a dar horas.
Compreende-se desde logo pelo atrás referido que estar com Fernando Grade era uma festa, pela sua irreverência no trajar e no falar. Descreve-o Joaquim Moedas Duarte como «um homem interessante, focado no seu missionarismo poético», «uma voz poética original, com certos traços de humor, desconcertante, por vezes». E acrescenta;
«Inventor de ditos rápidos e certeiros, por vezes sarcásticos ou humorísticos. Como aquele que uma vez me atirou, quando me queixei das muitas actividades culturais, e dos muitos livros a que não conseguia dar vazão:
– Olha, pá! Também me queixo do mesmo: não há tusa para tanta musa!»
Aliás, não posso deixar de transcrever, com a devida vénia, uma passagem do tocante testemunho do seu amigo Ruy Ventura, por se tratar, de facto, de bem apanhado retrato do personagem. Sim, porque Fernando Grade assumia-se como personagem e acabava por o ser:
«Quem o conheceu, vendendo os seus livros a quem os quisesse ou impingindo-os a quem os não quisesse, mas se cruzasse com ele, não o esquecerá. Vale a pena visitar com atenção muito do que escreveu. Vale a pena ponderar a sua atitude franca, de devoção ao fazer poético e à sua propagação.
Nunca me convenceu a publicar nas suas edições MIC (“sou um pelintra, meu amigo”, respondia-lhe e ele ria). Nunca conseguiu convencer-me a mudar de nome literário (advogava que, em vez de “Ruy Ventura”, deveria ser antes “Pedro Biscainho”). Ponho-me no entanto, neste dia de Camões e de todos os poetas pobres, a recordá-lo, de óculos grandes, sem bigode, com barba gigante e a inevitável boina. E tenho saudades do seu desintegracionismo… Morre com ele um certo tempo português, que não foi meu, mas no qual ainda toquei, na última década do século XX».
Criou, de facto, em 1964/65, essa corrente literária e artística a que deu o nome de desintegracionismo. Alheio a esses meandros estéticos, confesso que nunca entendi bem o que era. Revolucionário seria; avesso ao status quo seguramente; libertário, até me apetecia classificá-lo assim. A série Viola Delta constitui prova acabada da sua militância poética, do seu jeito de dar a mão a quantos queriam entrar para o barco da Poesia. Sem restrições!
Sobre a qualidade dos seus desenhos e poemas os peritos dissertarão. Dalguns gostei, doutros nem por isso. Lembro-me – mas será difícil agora chegar lá, no meio de tantos livros – de um que me tocou particularmente, em que Grade comparou a amada a um apetitoso cabaz de morangos. Essa imagem tem-me acompanhado.
Recordar-se-á ainda que é de sua autoria o poema «Vamos cantar de pé», que, com música de Pedro Osório, cantado por Paco Bandeira, ganhou o 2º prémio da Festival da Canção em 1972; e que exerceu, no triénio 1977/79, as funções de vereador da Câmara Municipal de Cascais.
Boémio, irreverente, Fernando Grade não deixou indiferente, estou certo, nenhum daqueles com quem privou. Era o tipo de pessoa de que se gosta ou que se detesta. Não havia meio termo.
Num texto autobiográfico que inseriu em Viola Delta XLIX (Novembro de 2012), alude aos «milhares de acções por todo o País – clubes populares. associações de moradores, sindicatos, comissões de trabalhadores, sedes de partidos progressistas…» e, de modo especial, nas escolas, onde «dissecava a destrinça entre prosa e poesia, significante e significado, conotativo e denotativo […]». «Desta feita, «puxando pela imaginação dos alunos», considera que «foi inquestionavelmente o pioneiro, entre nós, da disciplina que outros viriam a denominar ESCRITA CRIATIVA».
Lá onde ora está certamente já começou a organizar a agenda: amanhã, esta vernissage; depois de amanhã, mais um livro de poemas com pôr-do-sol a abrilhantar. E vai protestar por, afinal, este primeiro fim-de-semana ser a seco.
Venha daí um forte abraço, Fernando! Descansa em paz – que já não tens de andar de um lado para o outro a vender mais um volume da tua Viola Delta! E, na próxima vernissage comme il faut, à maneira antiga, descansa, beberemos uma taça de espumante e, se a houver, comeremos uma empada por ti. Tá prometido!
À família enlutada, designadamente a seu filho Pedro, apresento mui sentidos pêsames.
Ricardo Alves:
Estou mesmo triste. Sabia que estava a morar com o filho. Era um poeta único e excelente.
Nunca me devo ter cruzado com Fernando Grade e apesar disso o nome não me soa a estranho, Zé.
Continuo sem saber o que entendia ele por Desintegracionismo, mas depois deste retrato psicológico tão bem traçado, posso formar uma ideia que não estará longe da intenção que norteou o autor de tantas manifestações artísticas.
Dos títulos aqui referidos, não há dúvida de que OS MORTOS TRATAM-SE POR TU, tem um profundo sentido de destruição de mitos e uma fina ironia com alvos definidos. Depois da luta, tantas vezes inglória, morremos todos da mesma forma. Acabam-se penachos, elites, sobrancerias.
E lembro-me da minha avó Carolina me dizer, a propósito de uns pretensiosos: “não há excelências, há pessoas”.