Uma pedra estranha…

Suspeitou-se de coisa romana, mas… outra surpresa surgiu

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Andam obras na capela-mor da igreja de São Pelágio, matriz de Longa, concelho beiraduriense de Tabuaço.

igreja de São Pelágio, Longa, Tabuaço

Pedra estranha ora posta a descoberto, no âmbito das investigações para a elaboração da Carta Arqueológica do concelho agora iniciada, fez o senhor padre desconfiar: «Não será um altar romano com letras?». E não se descansou enquanto se não arranjou meio de a tirar dali!…

a estranha pedra ainda embutida na parede da capela

Igrejas antigas não é raro que sejam erguidas em sítio onde a tradição popular tenha enxergado algo de especial, assim a modos da presença de um ‘génio’ dotado de excepcionais poderes. Havia, pois, que o acarinhar, a fim de melhor proteger as gentes derredor. Por isso houve, logo desde os começos da Cristandade, a preocupação de cristianizar esses locais, normalmente edificando aí uma igreja. A Sé de Lisboa, por exemplo, foi seguramente construída no local da antiga mesquita e não causaria espanto se, sob a mesquita, vestígios houvesse de um templo romano.

Estava certa, por conseguinte, a desconfiança do senhor prior de Longa. E não se estranhou que, durante a campanha de restauro do retábulo e tecto de caixotões da capela-mor da matriz, inserida na amálgama de pedras que servia de suporte ao altar e trono do retábulo de talha dourada e policroma de estilo barroco joanino (do 2.º quartel do século XVIII), se tivesse identificado uma pedra esculpida que, veio a descobrir-se, seria a pedra-relicário de suporte do altar românico deste vetusto templo.  As obras têm apoio comunitário no âmbito de candidatura feita pela Câmara Municipal.

A pedra foi retirada no passado sábado, 24, contando com a ajuda do Presidente da Junta de Freguesia e de alguns populares, estando presente o Sr. Abade, Padre Fernando Albano Cardoso. Mede, em cm, 92,5 – 94,5 de altura e tem, de largura 34 – 41 no topo, 26 – 34 a meio e 44 – 47,5 na base. É de granito, de grão médio; são lisos a base e o topo.

Trata-se de uma coluna, de perfil côncavo nas suas quatro faces, no topo da qual se acha esculpido o compartimento, também denominado de ‘túmulo’ ou ‘sepulcro’ (loculus), onde se encerravam relíquias de santos, dentro duma caixa-relicário de madeira (lipsanoteca). Sobre ela se colocava a pedra de altar. A presença de relíquias era, como se sabe, condição necessária para a sagração da igreja.

Chegou-se recentemente à conclusão de que o altar romano dedicado à divindade Aracus Arantoniceus, de Manique de Baixo (Alcabideche – Cascais) também fora «cristianizado», porque serviu de base à pedra de altar da vetusta igreja de S. Paulo. Por outro lado, as imagens de aras romanas que Manuel Nunes mostra na sua Carta Arqueológica do Concelho de Lousada (2008, p. 166 e 204), muito se assemelham ao que ora se encontrou em Longa.

Não nos custa, pois, concluir que, também aqui, serena aculturação haja ocorrido ao longo dos tempos: primitivo altar romano – agora já sem a inscrição que porventura ostentou – foi adaptado a pé de altar e o fóculo onde, outrora, se poderiam queimar essências em honra de divindades pagãs cedeu funções para albergar relíquias de santos da Cristandade!

(artigo em co-autoria com Gustavo Monteiro de Almeida e José Carlos Santos)

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