UM TAXISTA FALADOR

Primeiro uma negativa que nada tem a ver com ele, só com gente, muita gente…

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Não, não era assim que queria rever o Porto para matar as saudades anuais! Digo anuais, porque as vou amontoando para fazer a viagem só uma vez por ano.

Depois de um almoço com vista para uma encosta de Miragaia, descia dezenas de escadas dando passagem a visitantes mais rápidos que procuravam a fama da Ribeira e, quase chegados, de mão a fazer de pala sobre os olhos, não conseguiam afastar aquela cortina de gente que não deixava ver o cais.

Conclusão: tinha deixado Lisboa com taipais, obras, multidões nos lugares mais procurados por turistas. Ia encontrar o Porto ainda com obras, taipais, muita gente, nos locais de que queria usufruir. Que directiva maquiavélica anda a transformar o país num estaleiro, por causa do metro, ou de outra cena qualquer?

Contratava uma empresa para me arranjar um táxi de seis lugares. Quem esperava em Campanhã era um jovem alto e magro já casado, ainda sem filhos – nada lhe perguntava, é preciso esclarecer – que ia fazendo conversa guiado pela curiosidade.

E por guiar, fazia de guia com toda a eficiência, sem ninguém lhe pedir mais informações para além das que decorriam dos diálogos. Com uma cultura geral de fazer inveja, sobre o mundo e sobre a sua cidade, apontava cada recanto de interesse, os restaurantes com melhor comida, as viagens de barco que já tinha feito com a sua “Maria”.

Não queria viver noutro lugar do mundo, tivesse o que tivesse de fazer no Porto para não sair. Até já tinha casa própria e uma vida bem planeada, sem dever nada a ninguém.

Que era alinhado e de boa formação, percebia eu assim que vinha entregar os 20 € que tinham ficado no táxi. Não eram dele, logo…E nada tinham que lhe agradecer, mas aos pais que o educaram assim. Gente do Norte é do bem.

Um portista ferrenho, disse mais para mim. “Por acaso sou portista dos sete costados. Nasci cá, moro cá, que outra coisa havia de ser?”

“Pois eu também digo sempre que sou da minha cidade e no entanto moro a uns quilómetros de Lisboa.”

“É a tal coisa…dessa gente que lá vive, quem é mesmo da capital? A senhora, por exemplo tem pai nascido no Porto, filho de uma senhora de Gaia e de pai algarvio, mas foi nascer na Beira Litoral, na terra da sua mãe. Agora pergunto eu: afinal é de Coimbra, ou de Lisboa”?

O exame estava difícil e eu não queria reprovar.

“Sou um bocadinho desses lugares todos, mas serei mais coimbrã. Só não posso esquecer que Lisboa me acolheu ainda adolescente e também a sinto minha. No fundo sou portuguesa, como o senhor”.

“Ah, agora já nos entendemos. Concordo consigo: gostava de ver a Ribeira no Porto, que também lhe pertence, ou a Baixa-Chiado em Lisboa, que me pertence um bocadinho, sem magotes de mirones. Mais repartidos pelo ano todo, continuava a ser bom para o negócio”.

E era a partir daí que tudo girava ainda melhor sobre as rodas do seu táxi de seis lugares. Deixava-nos no ponto escolhido, voltava aonde quer que estivéssemos.

Fazia companhia jovial, enaltecia as singularidades da “melhor cidade do mundo”, exprimia-se quando “os gajos”, com um lugar a dois metros, faziam questão de estacionar em segunda fila diante da porta por onde queriam entrar… Dez minutos para eles era pouco tempo para carregar-descarregar, mas talvez fosse demais para quem ficava à espera que passasse o trânsito em sentido contrário, para poder seguir o seu destino.

Na despedida estendia a mão em cumprimento, seis cumprimentos, e recebia sorrisos. E mais uma coisa que por direito lhe pertencia: a nota de 20 € que tinha encontrado no táxi. Era nossa, era dele.  Nunca pedia vantagem por estar à espera, por ser chamado ao local onde estivéssemos, jamais salpicava de cinzento a claridade dos dias com que o tempo nos brindava.

Falo do tempo atmosférico, falo do ambiente das ruelas estreitas da Ribeira, onde jovens encantadoras exploram os seus negócios em lojas recuperadas com gosto, como a Art & Wine:

“Não vão por aí, caraças. Então levam a senhora a subir trezentos degraus até à Sé”?

2 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito de ler a crónica de Helena Ventura Pereira porque espero sempre a sua escrita clara e concisa e já outro interregno se prolongava por aqui. Como beirão quase alentejano em Lisboa sinto a dualidade de identidades e de gostos e até misturo açordas da infância com outros manjares que não sei onde tiveram origem na maior parte dos casos.
    Também gosto de tripas à moda do Porto quando vou ao norte e uma boa francesinha assim como gosto das verdades ditas com suavidade. O país todo em obras é uma delas. Muito obrigado e apareça mais vezes.

  2. Creio que há, na verdade, taxistas que vale a pena espicaçar com uma palavrinha para eles nos mostrarem quanto sabem. Andei, há dias, no táxi de um mestre em adivinhas; foi adivinhas a corrida toda, é conhecido! Bonita descrição com que Helena nos mimoseia, carago! E, no Porto, só quem não conhece é que não sabe que taxista gosta de meter conversa, educadamente, e não perde a oportunidade de dizer que é portista ferrenho e que, mesmo com as obras do metro a esburacarem tudo, não há cidade melhor! E nos conta onde se come bem e nos adverte das dezenas de degraus, não, amigo, não vá por aí que se cansa à brava! Vamos até ao Porto, Amigos! Bem hajas, Helena!

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