NOS CUS DE JUDAS

Mais um jovem conhecido a receber uma informação preocupante da sua universidade: é melhor não contar com a renovação do contrato para a próxima temporada, esta já que vem entrando.

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Na minha cabeça passam os fotogramas das vagas maciças de emigração portuguesa dos anos 60, princípio de 70, sobretudo para França e Luxemburgo, as tais que diziam com pouca preparação académica e prontas para aceitar qualquer tarefa a troco de manter vivo um sonho. De facto, desprotegidos, os jovens passavam as fronteiras a salto, fugindo até do serviço militar obrigatório e da morte em cenários de guerra colonial.

Mas esses pelo menos sabiam que iam encontrar um tipo de trabalho não qualificado, que lhes garantia a sobrevivência. À custa de sacrifícios medonhos, a morarem em  habitações tão precárias como no país de origem. E a preto e branco agigantam-se os degradantes bidonvilles, tão admiravelmente fotografados por Gérald Bloncourt, onde crianças de sapatos na lama exibiam roupas limpas e um sorriso inocente. Uma delas, a que segurava a boneca como quem sustém a vida, conseguia fazer um curso superior em Coimbra. Ainda o confessava ao fotógrafo antes dele falecer em 2018.

Todos os sectores da sociedade portuguesa enfrentavam então precária situação, agravada com a partida dos varões jovens para as várias frentes de guerra, com as mortes e mutilações de tantos. Ficavam os indivíduos que as ocupações do turismo absorviam, um turismo em crescimento exponencial e desregrado, que no Algarve e em outros paraísos de sol e mar, sacrificava a paisagem, as particularidades locais, para fazer crescer hotéis como cogumelos. O sector não conseguia alimentar a economia do país, insuflada pelas remessas dos emigrantes que ele mesmo, país, tinha empurrado para fora.

Comparações possíveis? Sim, muito mais tarde, em novo regime e em alternância partidária, ainda havia políticos que aconselhavam os jovens a emigrar, como se o país fosse feudo de uma elite escolhida por entidade divina. E eles emigravam, emigram ainda.

Este jovem de que falo vai a caminho dos 50, pode representar os melhores da sua geração: com licenciatura e doutoramenteo, inteligente, dedicado à investigação. Ainda motivador de camadas jovens para a necessidade de protegerem a Natureza, a limpeza dos oceanos. Como ele, tantos outros com conhecimentos técnicos e científicos que podem acrescentar capital humano de nível superior a qualquer sociedade, estarão também condenados a deixar o país ao fim de 20 anos de entrega, sem lugar no mercado de trabalho? Há décadas eram a França e o Luxemburgo, talvez menos a Suíça e a Alemanha, sempre o Reino Unido e a Irlanda, os países de acolhimento. Hoje não há garantia de estabilidade na Europa, também ela afectada por economias debilitadas e profundas crises de emprego.

Tudo culpa dos políticos de ontem e de hoje. Sempre bafejados pelo prolongamento de regalias depois de cessarem funções, num imoral sorvedouro de fundos desmesurados já depois da vida activa, pouco cuidam do futuro do país. Antes se divertem, dentro e fora, no aproveitamento de regalias, em investimentos rendosos, enquanto os jovens valores procuram desesperadamente assentar num lugar e desempenhar funções com perspectivas de futuro estável.

Da parte deles, políticos antigos e dos executivos que lhes sucedem, nunca houve a preocupação de articular a criação de cursos superiores, com as necessidades do mercado. Bem sabiam e sabem que, desejosos de um canudo que lhes garanta um lugar ao sol, os jovens tentam mais um grau de ensino, melhorando as estatísticas da qualidade de vida, medidas pelo estado da saúde e pelos níveis de escolaridade. E como, percebendo o logro, o retorno de uma ocupação condigna tarda, vão da licenciatura directamene ao mestrado e ao doutoramento, sujeitando-se a ocupações mal remuneradas, ainda esperançados na concretização do sonho.

Todos são filhos de um homem e de uma mulher, mas poucos são meninos de papás com capital de relações sociais. Os progenitores menos afortunados arcam com as despesas de uma licenciatura. Portugal é dos países que apenas afecta 0,7% do PIB ao Ensino Superior. No fim do curso o mundo laboral não absorve parte dos novos graduados, ou o estado não compensa as famílias do investimento pesado. Podem elas, até, ver onerada a sua existência, porque a situação precária dos filhos passa, não raras vezes, pela estadia prolongada em suas casas já com os respectivos companheiros e descendência.

E cá temos de novo a emigração no horizonte. Sair para longe para receber uma remuneração condigna que garanta um pouco mais do que a mísera sobrevivência. Quase todas as famílias têm filhos espalhados ainda pela Europa e por mais longe, nos Emirados Árabes Unidos, na Austrália, no Canadá, ou como dizia um conhecido há dias, “nos cus de Judas”. E sentia-se duplamente penalizado por não ver o filho encontrar uma solução dignificante perto de casa, que lhes permitisse usufruir da companhia uns dos outros, enquanto há uma réstia de vida.

Portugal devia fortalecer-se, planear, aproveitar os seus recursos humanos, mas na selva da luta partidária pelo poder e neste modelo do salve-se quem puder, não há espaço para meritocracias, nem para reconhecimento da honestidade. Cidadãos revoltados, repartidos pelos cus de Judas de um mundo competitivo, eis o que o esbanjamento indevido e a falta de concentração nas políticas essenciais, vêm produzindo. Alguns conseguem a realização pessoal e acabam por se adaptar ao país de acolhimento. Afinal o reconhecimento do valor e a compensação monetária, são um forte incentivo para criarem laços. E depois o mundo é um só, neste tráfego caótico de “livre circulação”. Mas não deixam de ficar atravessados na angústia dos pais, que os levam até onde podem e que desistem de contar com o seu amparo na idade em que mais precisam.

Para eles já é importante perceber que os descendentes alcançaram uma vitória, ainda que longe das raízes. São os bem-sucedidos. Os que ficam vão-se perguntando se valeu a pena marrar noites a fio para viverem de biscates num país, e num mundo, dividido por lotes que nada têm a ver com o merecimento, mas com os oportunismos que conseguem ir derrubando os mais habilitados.

Talvez um dia também  eles tenham de partir para um cu de Judas qualquer.

3 COMENTÁRIOS

  1. Um drama, este, de o País se ver despojado dos seus cidadãos mais promissores. Uma revolta enorme, esta, a dos cidadãos que o País enxota como indesejáveis.

    A Helena Ventura Pereira já identificou, e muito bem, os principais contornos e pontos críticos desta questão. Eu salientaria, talvez, o aspecto da irracionalidade subjacente: o País -as famílias cada vez mais, mas também o Estado – investem na educação e “sobre-educação” destes jovens mas são outras economias e sociedades que, sem terem tido de suportar os correspondentes custos, vão acaparar os resultados daquele investimento. Para os decisores políticos que privilegiam a Economia sobre tudo e todos, isto deveria fazê-los pensar.

    Mas sem dúvida que o que mais choca é o problema ético: um País que pouco ou nada faz para garantir lugar aos seus cidadãos!

    No caso vertente, tratando-se de um investigador ou docente e investigador do ensino superior, acresce que Portugal já se viu por mais de uma vez “chamado à pedra” pelas instâncias da U. E. dada a extremamente elevada taxa de precariedade do emprego destas profissões. Estaremos a ser mais papistas do que o Papa, ao que parece… Mas não, só retoricamente se fingiu arrepiar caminho, o desemprego e os contratos a termo certo continuam a dominar na comunidade científica portuguesa mais jovem.

  2. Crónica muito oportuna nos tempos que correm. Os órgãos de comunicação social estao cheios de conversa sobre futebol confrontos politicos ofensas e nada de discutir os assuntos que interessam ao país.
    Os jovens e menos jovens correm mundo à procura de um lugar ao sol quando o sol está em Portugal. Falta é preocupação ou sabedoria politica para resolver o que é preciso.

  3. O grande aumento do salário mínimo não foi acompanhado em proporção pelo aumento do salário médio e Portugal continua a ser, na Europa, um país de mão de obra barata que não consegue reter os melhores 🙁 Uma crónica muito pertinente

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