Em 5 de setembro de 2017, a ordem dos advogados brasileira, secção do Piauí, atribuiu a Esperança Garcia o título de “Primeira mulher advogada do Piauí”, sem que a reconhecida alguma vez tivesse, sequer, estudado leis, que, de resto, lhe eram triplamente adversas, por ser escrava, por ser negra e por ser mulher.
Desafiando Caia Arphania, calorosa, apaixonada defensora dos direitos humanos na Roma antiga, e por isso tudo mal vista pelos homens, ditos racionais, Esperança, que viveu no século XVIII, será talvez a segunda Advogada reconhecida no mundo.
Era escrava, logo, era-lhe proibida a leitura, o que não a impediu de aprender a ler pela mão dos Jesuítas. E ad vocou, usando o mero senso de justiça, muito para além do mediano bom senso que nos encerra nas nossas tamanquinhas.
Vem ela a propósito por saber e praticar instintivamente o sentimento de pertença a uma comunidade política, o que hoje tanto nos falta.
Desafiando a integridade e a saúde física, escreveu ao governador da província de São José do Piauí, a carta que vos deixo – descoberta em remotos arquivos, 247 anos depois de escrita – em nome próprio e em nome de outras, tantas, mulheres massacradas. Com 19 anos ousou escrever uma petição escorreita onde reivindicava a dignidade, o respeito pelos poucos direitos concedidos aos escravos e onde denunciava os abusos físicos a que ela e sobretudo as mulheres escravas, mais do que as demais, estavam sujeitas.
É isto exercer a advocacia, por isto ela é Advogada:
“Eu Sou hua escrava de V.S administração do Cap.am Antoº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am pª Lá foi administrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella passo mto mal.
A primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo huã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço esplicar q Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.
Pello ã Peço a V.S pello amor de Ds e do Seu Valim ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha
De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”
Crónica também publicada no Facebook de Isabel Duarte.