ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS

Dedico esta crónica ao meu companheiro de uma dúzia de anos, que nos últimos três anos e meio transformou todo os afetos num cuidado inexcedível comigo.

1
1611

Há muitos anos, numa viagem de autocarro, tive como companheira uma mulher desconhecida, que durante mais de uma hora me contou como abandonara o trabalho profissional para se tornar cuidadora da mãe.

Ouvi-a quase incrédula, reconhecendo naquela renúncia à sua vida profissional e social decorrente, um exemplo inexcedível de coragem e amor filial.

Perguntei-me se eu seria capaz de tal e, não duvidando da autenticidade do seu testemunho, a ela perguntei: “e tem rendimentos que lhe permitiram deixar de trabalhar?”

Que sim, tinha, da reforma da mãe e complemento de viuvez, desde a morte do pai. Não havia ainda o estatuto de cuidador informal, e mesmo que houvesse, não seria seguramente esse subsídio que lhe permitiria sustentar-se a si e à mãe.

Não tendo eu condições para deixar de trabalhar, vivendo a 100 km de distância, sim, pus o meu pai, viúvo, num lar, onde durante sete anos ele pode conviver com alguma alegria, com amigos a amigas que também lá moravam.

Todos os quinze dias, ao fim de semana, me deslocava à aldeia, com a minha irmã, a morar e trabalhar a mais de 200 quilómetros, e levávamos o pai a passar o fim de semana em casa.

Nunca lhe ouvi uma queixa sobre a forma como era tratado no lar. Pelo contrário. Aos domingos, mal acabávamos de almoçar, já ele nos lembrava que queria ir lanchar ao lar.

Desenvolveu até um sentido de humor que lhe desconhecia. Dizia, com piada, quando entravam novos utentes, “hoje chegou mais uma remessa de velhos”!.

As notícias sobre maus tratos a idosos nos lares, que de vez em quando inundam os ecrãs da TV, não permitem generalizar. Contudo, sei como algumas imagens se tornam omnipresentes e se toma a árvore pela floresta. Mas eu recuso-me a generalizar.

O que me indigna é que pareça não haver meios para a fiscalização regular, sem aviso prévio, destas instituições que acolhem idosos, alguns por preços obscenos. Que a sociedade em geral só tome consciência da falta de condições dos lares, quando algum incidente abre um telejornal. Os meios de comunicação social cumprem a sua função. Não que os seus propósitos sejam de indiscutível ética. As audiências determinam a agenda, mas o importante é que façam o seu trabalho de denúncia. São eles que desencadeiam de imediato inspeções e, não raramente, encerramento dos lares. Mas os agentes de fiscalização que, segundo a Ministra da tutela, estão sempre a acontecer, não veem?! Precisam das denúncias, das imagens chocantes dos media para abrirem os olhos!?  A cegueira, a ignorância, a desvalorização do que está à vista todos os dias, isso sim, suscita-me indignação. Mas ainda assim recuso-me a generalizar. Os lares não são todos iguais, embora se tenham tornado o negócio da velhice, no caso dos privados, aos quais poucos têm acesso, ou padeçam de todos os males das instituições públicas, no caso dos tutelados pela Segurança Social.

A minha atual situação de dependência torna-me uma potencial candidata a um lar.  Amargurada pelo condicionamento que tenho feito à vida do meu companheiro, discutimos muitas vezes essa alternativa. Com todo o desvelo, ele tem-se oposto categoricamente a esta opção.  Não deixou o seu trabalho como professor de piano, embora concentre o seu horário em 2 dias por semana, e tem conseguido conciliar a extrema dedicação como professor com os cuidados que carinhosamente me presta.

Esses momentos em que está com alunos devolvem-lhe o sentimento de que a vida continua o seu rumo, apesar dos cuidados que a minha situação lhe exige. São indispensáveis para manter o equilíbrio psicológico, vendo/ouvindo os alunos crescer como futuros pianistas ou, pelo menos, como apreciadores de boa música.

Sou grata pelo seu zelo como cuidador e sei quanto isso tem contribuído para que eu não desista de lutar todos os dias por mais autonomia, em pequenos gestos que o libertem, e a nós dois alimentem a esperança de que posso tornar-me menos dependente.

Sei que nunca mais conduzirei um carro, mas não ficarei presa em casa. Ele tornou-se também o meu motorista, para as terapias e para todas as dimensões ainda possíveis da vida social.

Contudo, jamais julgarei aqueles que encontram nos lares uma solução para darem aos pais ou companheiros/as uma oportunidade de continuarem as vidas, as suas e as deles. Não julgarei o meu companheiro, nem o meu filho, se esse tempo chegar também para mim.

A minha luta por manter um mínimo de autonomia contínua. Mas se me acontecer, involuntariamente, desistir da luta, sei que eles procurarão o melhor possível para mim. E devem fazê-lo sem remorso. Porque o que ficará são as memórias do tempo em que vivi feliz na sua companhia.

1 COMENTÁRIO

  1. Quem tem lucidez para terminar um texto desta forma, tem reservas de força para continuar a lutar pela autonomia.
    É o que todos desejamos quando lemos as crónicas sobre o exemplo de Alice Marques, que se tornou uma inspiração para todos os que cedo desistem.
    Tiro-lhe o chapéu, aprendo com a sua escrita reflexiva e desejo que muito em breve consiga os resultados que o seu esforço merece.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui