Há momentos em que nos assalta o desconforto de – por ignorância – termos de nos declarar incapazes de compreender cabalmente uma cena, um espectáculo, um fenómeno, porque não estudámos, não temos luzes bastantes… O concerto de Rui Massena foi um deles.
Também é verdade, porém, que nos resgatamos com a beleza duma flor, a sinfonia dos tons. Agrada-nos, extasia-nos, desperta em nós um sentimento de felicidade e de bem-estar, ainda que não lhe saibamos o nome – o comum e, muito menos, o científico – nem se é originária do Brasil ou do Cabo da Boa Esperança ou se, ao invés, é tipicamente endógena… Extasia-nos e… pronto!
Essa (devo penitenciar-me?) a sensação que ora ainda tenho, passados que foram alguns dias sobre o concerto que Rui Massena e o seu conjunto deram no Salão Preto e Prata do Casino Estoril, na noite de 29 de Abril. Permanece a sensação boa proporcionada. Permanece a visão daquela atmosfera sombria, com suaves jorros de luz aqui e além. Intimidade. Reflexão. Um acorde agora, outro só daqui a um ou dois segundos. Aquele grupinho ao canto, como que em conluio, mal iluminado, donde vêm sons esparsos, a sublinhar a voz, também ela recatada, do piano… quem serão? Senhoras? Senhores? Violinos parece que tocam, pelo gemido das cordas… Vem agora, meio na penumbra, o vulto que se senta na percussão. Mais tarde, outro aparecerá, numa guitarra. Só larguíssimos minutos depois de o concerto ter começado (às 22 e 45 minutos) é que ensaiámos um aplauso (quase nos íamos esquecendo…) e começámos a vislumbrar o ensemble, o tal conluio apenas sugerido no início. Conluio forte, conspiração a acarretar atrás de si longuíssimas horas de ensaio, para nos proporcionar, assim miniaturizados estranhos sons, de facto; estranhos, mas propiciadores de uma viagem onírica, guiada por um senhor de cabelos em pé, despenteados, que nem jeito tem para falar – ou que não quer falar com a sua voz humana…
Seduziu-me, há dias, a frase dum amigo a evocar viagens de infância em bolinhas de sabão. Sensação idêntica tive, na noite ímpar do concerto. Viagem. Percurso por plagas inóspitas, ora dolentes, ora de ridentes cachoeiras, ora de folhagens sussurrantes…
Tivera eu erudição musical, entreter-me-ia a ver se era andante ou allegro o movimento; se os violinos eram todos de som igual ou se havia violetas pelo meio (estaria ali algum stradivarius?). Interrogar-me-ia acerca da designação daquele singular teclado sobre o piano, que mais parecia órgão em miniatura…
Tivera eu preocupação de jornalista consciente e, além do rol dos trechos tocados (se é que os trechos tinham nome e autor que não fosse Rui Massena); daria boa conta dos nomes de todos os componentes do grupo, que, aliás, Rui Massena, teve o cuidado de apresentar, mas tão extasiados estávamos que não houve jeito de anotar. Faltou um programa escrito; à entrada, só nos deram bónus para ir jogar nas máquinas; mas, se calhar, isso foi de propósito e não por falta de dinheiro para imprimir o programa. Assim ficamos melhor, no mundo das sensações boas. Sem etiquetas, sem a peia das etiquetas.
E por esse sonho navegámos, sem baixios nem escolhos d’ansiedade. Ficou bem longe o estrondo das explosões e o choro contido dos meninos órfãos. Oásis foi – para melhor conseguirmos, agora, enfrentar a dureza do deserto!